25.11.11

Regularização Fundiária / Land Formalization (2/3): Instituto Atlântico & Brasil

Nesta segunda parte me proponho a explicar o projeto indédito de regularização fundiária promovido pelo Instituto Atlântico, que visa conceder títulos de propriedade à comunidade do Morro do Cantagalo e apresentar um panorama geral sobre a legislação de regularização fundiária brasileira.



O projeto de regularização gerenciado pelo Instituto Atlântico partiu, na realidade, da própria comunidade do morro, liderada e representada pelo Luiz Bezerra, presidente da Associação dos Moradores do Cantagalo, que através da Inês Barreto, do projeto Segurança de Ipanema, chegou ao Instituto Atlântico, liderado pelo economista Paulo Rabello de Castro. Tanto a comunidade do Cantagalo como a do seu vizinho Leblon, um dos bairros mais ricos do Rio de Janeiro, tinham a ideia de que a suas propriedades seriam valorizadas no caso da regularização, a primeira pela criação dos títulos de propriedade e a segunda que tinha os imóveis na proximidade de uma zona de tráfico, violência e pobreza. O Instituto Atlântico foi o grande mobilizador da história, procurando escritórios de advogacia e apoio financeiro para organizar o projeto para ser apresentado ao governo estadual do Rio de Janeiro. É de se lembrar que todo trabalho e mobilização é em vão se não há interesse público na regularização fundiária.

Segundo Luiz Bezerra, a presença da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) no morro do Cantagalo também foi importante para iniciar este processo de regularização. Até então, por causa do governo do morro ser o comando das operações de tráfico de drogas, era difícil até mesmo entrar no morro para fazer os levantamentos de topografia e da quantidade e tamanho dos barracos. Afinal, caso o morro fosse regularizado os comandantes do tráfico perderiam grande parte do seu poder sobre o território, anteriormente um estado paralelo ao Rio de Janeiro.

Quando falamos sobre a comunidade do Cantagalo, estamos nos referindo à pessoas que moram ali há décadas, alguns mais de 60 anos. Segundo a legislação brasileira, aqueles que ocupam e cuidam de terrenos privados alheios por mais de 10 anos ininterruptos sem que haja reclamações do proprietário original têm direito à propriedade do terreno através do Usucapião. Como comentado no primeiro post, é apenas uma possível regra entre várias para decidir de quem é um determinado recurso. Como muitos defendem a titularização da propriedade através da defesa, uso e transformação de um determinado recurso a princípio a regra me parece razoável. No caso do Cantagalo, apesar da comunidade estar lá há muito mais do que 10 anos, a população legalmente não têm direito à sua terra, já não se trata de propriedade privada alheia mas sim de áreas públicas, que não estão sujeitas à lei do Usucapião. Até agora o estado, teoricamente justificado para ajudar os mais pobres, utilizou deste artifício para manter a comunidade nesta situação precária, tendo ele o controle sobre toda a propriedade imobilizada de um grande eleitorado.

Grande parte das iniciativas de regularização são inviabilizadas pelo argumento da inexistência do Usucapião de terras públicas. O IA então buscou alternativas como artifícios legais que percebem que não há restrições para a simples doação dos títulos estatais para uma comunidade, conseguindo inclusive ajudar a criar a Lei Complementar 131/09, uma emenda à constituição do estado do Rio de Janeiro que permite a doação de terrenos do estado ocupados por comunidades carentes. Para se ter uma ideia do avanço que este processo já teve, a Secretaria Estadual de Habitação (SEH) do Rio de Janeiro já iniciou o processo de regularização em maio deste ano, com a entrega simbólica de 44 títulos a moradores do Morro do Cantagalo. É uma pena que na notícia divulgada pela SEH a menção do Instituto Atlântico só apareceu como um dos presentes neste evento, sem mencionar sua importância no processo.

De qualquer forma, as questões legais que permanecem ainda são extremamente difíceis de serem resolvidas, como por exemplo a abordagem diferente para cada parcela do morro, áreas públicas mas pertencentes à instituições diferentes. Outro problema é como regularizar as áreas 'sombra', partes do morro que, segundo os documentos oficiais, não são propriedade de ninguém, impossibilitando a transferência direta como a que já foi efetuada. Um outro empecilho enorme para a continuidade do processo são os cartórios e o custo do registro oficial destas propriedades. Um oligopólio criado pelo estado, os escritórios de registro oficial cobram cerca de R$900,00 só para abrir uma nova matrícula de imóvel, chegando a alguns milhares de reais para viabilizar cada título, além da burocracia e demora para a realização do processo, mesmo neste caso específico de melhoria social. Para o morro inteiro (cerca de 1500 barracos) seria um custo inviável tanto para a comunidade do Cantagalo assim como para o apoio financeiro do Instituto Atlântico, uma ONG sem fins lucrativos.

Procedimentos burocráticos para regularização fundiária no Peru.
Fonte: "O Mistério do Capital", Ed. Record
É de se mencionar que nenhum processo de regularização é perfeito, e o IA está ciente dos problemas que podem aparecer no meio do caminho. Sempre existem aqueles que tentam tomar proveito da situação, como moradores de outras favelas que sabem que uma determinada terra vai ser regularizada e que vai valorizar, então logo constroi um barraco para tentar passar por morador. Uma das melhores maneiras para se contornar este problema é pela pressão dos próprios moradores da comunidade que será regularizada. Como eles entendem que é um processo legal difícil, eles fazem o possível para provar que estão lá há décadas e que não são aproveitadores em busca de lucro fácil. Isso é apoiado na existência de um marco legal no processo, regularizando apenas aqueles barracos que apareceram no levantamento de uma data específica. Mesmo assim, o projeto está muito além de grande parte dos projetos de regularização que são implementados no Brasil, que muitas vezes não levam em consideração os títulos de propriedade existentes na própria comunidade, dividindo a área em lotes que não têm concordância nenhuma com a realidade da favela ou cuja a iniciativa não parte de dentro da comunidade, mas caindo de pára-quedas através de políticas populistas que buscam manchetes em jornais e não resultados efetivos.

Todos estes cuidados e a busca da participação de vários agentes foram necessários para a viabilização deste projeto que partiu da sociedade civil, que acabou se encaixando na visão jurídica que a legislação brasileira tem em relação à regularização fundiária. Porém, tendo feito uma pequena pesquisa num Pocket Jurídico que comprei sobre Direito Urbanístico, vi que autores no assunto consideram que (grifos meus):
"...o grande risco da regularização fundiária de assentamentos informais é o retorno à precariedade se não forem criados mecanismos eficazes de capacitação dos beneficiários para arcar com o ônus da moradia regular."
e ainda que:
"...a inserção social dos habitantes deve estar articulada às políticas públicas, por meio de geração de emprego e renda, da participação social nos processos de gestão dessas áreas e de ações que assegurem a permanência dessa população..."
Acho bastante importante a forma de regularizar tratando com todos agentes em jogo no processo, assim como procedeu o Instituto Atlântico, até porque sem esta postura seria impossível levar o projeto adiante. Mas devo questionar alguns pontos da legislação, representados nos grifos acima. Ao meu ver, o grande ônus da moradia regular é criado principalmente pelo próprio estado, na forma de impostos (principalmente o IPTU, neste caso) e códigos e barreiras à construção impossíveis de serem atendidos pelos pobres. Não seria o caso de tentar diminuir este ônus da moradia regular ao invés de tratá-lo como um fato imutável? O mesmo ocorre com políticas públicas de geração de renda, que são menos necessárias caso exista uma diminuição na burocracia pública criada para regular geração de empregos por empresas privadas e a dificuldade para a criação de novas microempresas, que podem levar meses e custos enormes para serem estabelecidas. Tudo isso sem contar a carga tributária bizarra do país, mais elevada para pobres do que para ricos segundo o próprio IPEA. Por fim, questiono a necessidade de assegurar a permanência destes moradores naquele ambiente. Como comentei na primeira postagem desta sequência, há uma grande parcela de moradores do Cantagalo que ficam entusiasmados com a ideia de poderem, no futuro, poder vender seu barraco pelo preço do mercado formal, mais que o dobro da valorização que o imóvel restrito existente ao mercado interno do Cantagalo. Com esses novos recursos eles poderão se mudar para bons bairros cariocas, já integrados na sociedade. Essa restrição do direito do morador do Cantagalo de se mudar para onde ele entende ser melhor para ele e a sua família - assim como qualquer outro cidadão possui - me parece, no mínimo, esquisita.

De qualquer forma, vejo como positivo o certo consenso que existe atualmente entre urbanistas hoje promovendo e defendendo políticas de regularização fundiária. Me parece que o debate se acerca apenas da forma de se realizar esta regularização, inclusive encontrando críticas ao modelo proposto pelo economista Hernando de Soto citado na primeira etapa da postagem. Algumas destas críticas são claramente voltadas não para a proposta direta do autor, mas para um modelo "liberal" que envolve fortalecimento de propriedade privada. Outros liberais mais radicais argumentam que as políticas do autor não são suficientes para tirar países de terceiro mundo da pobreza, necessitando de mais reformas para tornar a economia globalizada e o mercado mais livre. Na minha opinião, a regularização fundiária traz resultados positivos para as comunidades tanto da comunidade que recebe os títulos de propriedade mas também como as pessoas que moram ao seu redor. Fico triste com a posição do estado brasileiro em relação aos projetos da Copa do Mundo no Brasil e das Olimpíadas no Rio de Janeiro, que de certa forma esquecem esses ganhos sociais em busca de resultados rápidos, dentro da sua gestão, para um grupo de pressão seleto. Nisso, apesar de discordar em diversos assuntos, concordo com Raquel Rolnik, provavelmente a urbanista brasileira mais influente da atualidade.

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In this second part I try to explain the new land formalization project promoted by Instituto Atlântico, which aims at giving property titles to the community living today in the Morro do Cantagalo slum. I will also present a general view at the brazilian legislation on land formalization.

In fact, the project lead by Instituto Atlântico started within the community of the Cantagalo slum, represented by Luiz Bezerra, the president of the Associação dos Moradores do Cantagalo (a residents association formed by the slum residents), which through Inês Barreto, from the Segurança de Ipanema project, reached Paulo Rabello de Castro, president of Instituto Atlântico. Communities from both the Cantagalo slum and its neighbour Leblon, one of the richest neighbourhoods in Rio de Janeiro, knew that their properties would have their value increased in the case of formalization. The slum would benefit by the creation of the property titles and Leblon would end its life-long proximity to a poor and violent slum which was until not so long ago controlled by drug lords. Instituto Atlântico was the coordinator in this whole story, going after lawyers and financial support to organize the project and hand it to the state government of Rio de Janeiro. One should remember that all work is in vain if there is no public interest in land formalization.

According to Luiz Bezerra, the presence of the UPP (Unidade de Polícia Pacificadora, or "Pacifying Police Unit"), was also important to start this process of formalization. Till then, because the drug lords controlled the slum, it was even hard to get into the area to make the necessary measurements of the terrain and the quantity and sizes of each shanty. After all, in case the formalization happened, the drug lords would lose their power over the territory, which was a de facto parallel state.

When we are reffering to the Cantagalo community we are talking about people living there for decades, some more than 60 years. According to brazilian legislation, those who occupy and take care of a third party's private property for more than 10 years non-stop with no claims from the owner have the right to that property by what is called the Usucapião law. As commented in the first post, it is only a possible rule amonst many to decide who owns a certain resource. As many argue for the entitlement through defense, use and transformation of the resource this rule seems pretty much OK to me. In case of the Cantagalo slum, besides having lived there for dozens of years, the population doesn't legally have the right to it's land as it is not private property but a government property, which are not applied to the rules of Usucapião. Until now the state, theoretically justified to help the poor, used this exception to maintain this community in a horrible situation, having control over the entire land of a large electorate.

Great part of the formalization efforts in Brazil are mitigated by the fact that the Usucapião law isn't applied to public lands. So Instituto Atlântico looked for legal alternatives that see no restrictions for the simple donations of state land titles to a community, succeeding even in creating the Lei Complementar 131/09, an amendment to Rio's state constitution permitting the donation of state-owned land to poor communities. To have an idea of the impact of this project, Rio's Secretaria Estadual de Habitação (the SEH, the State Housing Department) already started the formalization process May this year, with the symbolic donation of 44 land titles to residents of Morro do Cantagalo. I'm sad that on the official news given by the SEH they only mentioned Instituto Atlântico as "being present" at the event, with no credit of their work.

Nevertheless, the legal matters that remain are still hard to be worked out, as for example the different approach to each parcel of the slum, which are public areas but that are owned by different public institutions. Another problem is trying to formalize what they call "shadow" areas, which are pieces of land which are property of nobody in official documents, which prevents a direct donation as the one already carried out. Another problem are the costs of formalization created by state registries. These offices, an state created oligopoly, charge around R$900,00 (U$500,00) just to open a new registration title in the municipal archives, reaching a few thousand reais for the whole formalization process for each title, not counting the bureaucracy and waiting to do it, even in this very social program to help the poor. For the entire Cantagalo (around 1500 shantys) the cost would be unachievable by both the community and the financial support obtained by Instituto Atlântigo, a non-profit NGO.

It's important mentioning that no formalization process is perfect, and IA is aware of problemas that can arise. There are always those who try to take advantage of the situation, such as residents of other favelas who know that the formalization will take place and soon build up his own shanty to try to pass as an old-time resident. One of the best ways to mitigate this problem is by the residents of the to-be formalized community themselves. As they understand that it is a difficult legal process they do whatever they can to prove that they are living there for decades and that they are not short-term profiteers. This is based on a legal framework which can formalize only the residents that had their shantys mapped on a specific scheduled date. Even so, IA's project is way ahead of most projects being carried out in Brazil, which many times don't take existing community property titles into consideration and divide the area into lots that don't have any relevance to the actual slum or projects that don't come from bottom-up, but arise as populist agendas looking for headlines in newspapers with no effective results.

All this caution and reaching for the participation of every stakeholder was necessary to accomplish this project which came from civil society, and ended up fitting the brazilian legal view of how land formalization should be. However, doing some research in a Urban Law pocketbook I bought I realized authors have the following view on the subject (translation and bold by myself):

"...the great risk of land formalization is a return to poor conditions if efficient mechanims are not created to capacitate the beneficiaries to deal with the burdens of formalized property."
and:

"...the social placement of these residents must be articulated to public policies, by creating jobs and income, by social participation in the management processes of these areas and by action that ensure that the population stays permanently in the area..."
I think that formalization processes are better by uniting all of the players involved just as Instituto Atlântico carried things out, also because it would be impossible to carry it out if not in this way. But I have serious questions on some values created by the current legislation, marked above in bold. The way I see it, the largest burden of a formalized residence are the taxes (mainly the IPTU, in this case) and building codes that make it impossible to be reached by the poor. Wouldn't it be the case of trying to minimize this burden instead of treating it as a given? The same occurs with wealth generating policies, which be less necessary if only government would minimize public bureaucracy towards the creation of jobs by private companies and the delays to create new small companies, which can take months and enormous costs to be established. And lets not forget our bizarre tax rate which is relatively higher for poor people than for rich people, according to IPEA. Finally, I disaggree with the need to keep the residents permanently in Cantagalo. As I commented in the first part of this sequence, there is a great number of residents that are enthusiastic with the idea of being allowed to sell their shanty at the formal market price, more than twice the price restricted to the existing internal Cantagalo market. With these new resources they would be able to move to a number of good neighbourhoods in Rio, already integrated with society. This restriction for Cantagalo residents to move wherever they think is better for themselves and their families - a right owned by any other citizen - seems wierd, at least.

Anyway, I see as positive the near consensus between urbanists in favor of policies defending and promoting land fomalization. It seems that the debate usually arises in how this formalization should occur, even finding criticism to Hernando de Soto's proposed model which I quoted beforehand. Some of the criticism is clearly aimed not at the specific proposal by the author but at a "libertarian" model which envolves a strengthening of property rights. More hardcore libertarians also criticize his work as being not enough to increase wealth in third world countries, needing more policies aiming at more globalized and free economies. In my opinion, land fomalization brings positive results not only to the community recieving the land titles but the everyone surrounding it. I'm disappointed with the brazilian governments' policies regarding the World Cup and Rio Olympics projects, which in some way forget these social gains for fast rewards and giving in to pressure groups. Despite disagreeing on many other issues I certainly agree with Raquel Rolnik on this one, probably Brazil's most influential urbanist today.

9.11.11

Regularização Fundiária (1/3): Por que propriedade privada? / Land Formalization (1/3): Why private property?

"...the existence of prosperous enclaves in a sea of poverty conceals an abysmal retardation in a nation's capacity to create, respect and make available formal property rights to the majority of its citizens.
- Hernando de Soto, "O Mistério do Capital"
Propriedade é importante porque pessoas têm interesses diferentes e porque muitos recursos são escassos a ponto de mais de uma pessoa querer usá-los ao mesmo tempo. Terra é um destes recursos. A forma mais simples para resolver este problema - e usada durante grande parte da história da humanidade - é a força: se eu conseguir bater em você, a terra é minha. Parafraseando David Friedman, hoje esse método é usado apenas por pequenas crianças e grandes nações. Um modo mais sofisticado para isto é através de um sistema de regras que define o que é de cada um, que então chamamos de propriedade privada.



Com propriedade privada cada proprietário pode efetuar trocas um com o outro e no momento de cada troca existe geração de riqueza, já que no resultado de cada uma delas os recursos foram direcionados para aqueles que mais os valorizam. Digamos que eu tenha um terreno na zona sul mas gostaria de morar na zona norte. Troco meu terreno com alguém que mora na zona norte mas queria morar na zona sul. Ambas partes sairam ganhando, ambas ficaram mais ricas com a troca, os terrenos foram para aqueles que mais as valorizam. Através deste sistema de regras, cada proprietário também tem incentivos de cuidar dos seus recursos, já que qualquer dano causado nele significa um prejuízo direto no seu patrimônio. Lembremos também que estes proprietários não precisam necessariamente ser indivíduos, mas podem ser também associações, cooperativas, empresas ou qualquer coletivo organizado. O próprio estado também poderia ser considerado um coletivo organizado mas o seu modo de sustentação via taxação forçada o faz fazer mal uso dos seus recursos, já que caso haja mal administração o prejuízo pode ser (e normalmente é) resolvido com aumento de impostos.

Então como se define propriedade? Durante a história, vários métodos já foram usados para esta definição: quem tem mais força para defender um recurso, quem teve acesso ao recurso primeiro, que transforma o recurso em algo utilizável. Na minha opinião nenhum destes métodos pode ser considerado único e absolutamente correto ou moral, cabendo a nós apenas decidir critérios mais apropriados para a nossa sociedade. O que acontece na prática atualmente é que quanto mais pessoas ou instituições reconhecem que alguém é dono de alguma coisa, mais "legítima" se torna sua propriedade - não confundindo isto com "justo", já que não faço aqui um juízo de valor. É interessante perceber também que propriedade privada é algo que "emerge" naturalmente, normalmente antes de existir qualquer legislação estatal. O economista peruano Hernando de Soto, em suas viagens ao redor do mundo estudando favelas de todos os tipos, identifica que todas elas possuíam registros internos (normalmente na forma escrita, mesmo nos países mais pobres) identificando de quem era cada propriedade.
Vendedor de TV por satélite no Cantagalo

Em favelas o reconhecimento de propriedade existe, porém limitado ao seu espaço físico. No Morro do Cantagalo, por exemplo, que eu visitei e será relatado mais adiante nesta sequência de postagens, cada barraco tem seu título e seu histórico de proprietários registrado na Associação de Moradores. O problema é que o estado, do Rio de Janeiro e o brasileiro, não reconhece estes títulos de propriedade, e proíbe qualquer instituição de reconhecê-las. Isso torna a favela excluída do mundo externo de trocas entre propriedades. Se uma instituição deseja investir na favela ou realizar trocas com seus moradores não há como ela registrar as operações nos seus documentos internos, tornando isto um ato ilegal. Moradores das favelas também não têm grandes incentivos para investirem nos seus barracos já que não são efetivamente seus. Apesar de algumas vezes possuírem até mesmo televisões de LCD, celulares e bens de consumo de qualidade, as suas casas ficam literalmente caindo aos pedaços. Afinal, os bens móveis podem ser levados consigo caso o estado expulse-os de lá, o que pode acontecer a qualquer momento dependendo da estratégia política vigente.

Então isto gera o que o de Soto chama de "capital morto" no fantástico livro "O Mistério do Capital" (só R$9,90 na Livraria Cultura). Segundo seus cálculos, datados dos anos 90, propriedades não titularizadas no Haiti somam a um valor próximo de U$5.2 bilhões. No Peru o número chega a U$74 bilhões, nas Filipinas U$133 bilhões, no Egito cerca de U$240 bilhões. A conta no Brasil não deve fugir desta escala. Esses números mostram que o dinheiro que moradores de favelas deixam de pagar ao puxar ilegalmente água e energia da rede pública (que falha constantamente) é ínfimo próximo ao seu capital existente que está paralizado. De Soto também explica sobre as dificuldades enfrentadas pelo empreendedor irregular:
"Contrary to popular wisdom, operating in the underground is hardly cost-free. Extralegal businesses are taxed by the lack of good property law and continually having to hide their operations from the authorities. Because they are not incorporated, extralegal entrepreneurs cannot lure investors by selling shares; they cannot secure low-interest formal credit because they do not even have legal addresses; they cannot reduce risks by declaring limited liability or obtaining insurance coverage."
Alguns podem ver essa situação e pensar: "Mas se essas terras oficialmente são do estado e eu faço ajudo a pagar pelo estado... eu também quero um pedaço dessa riqueza pra mim!", defendendo políticas de expulsão dos favelados. Esse pensamento de visão a curto prazo é uma das coisas que mais prejudica os programas de regularização fundiária e, consequentemente, a sociedade como um todo. O tratamento de de comunidades que habitam um local anteriormente inutilizado há dezenas de décadas como invasores cria as tensões e desigualdades sociais que vêmos hoje. Esse tipo de raciocínio esquece que o próprio estado se estabeleceu como um invasor e provavelmente a tribo que ali habitava anteriormente também, e assim sucessivamente para sempre. Além do mais, mesmo se o estado capturasse essa terra de volta ele faria mau uso do recurso, como expliquei alguns parágrafos atrás. Ou seja, o custo social de manter as favelas marginalizadas é muito maior do que se elas forem regularizadas, deixando claros os benefícios não só para os favelados mas para todos a sociedade envolvendo. O que as pessoas deveriam perceber é que a titularização de propriedade e a regularização fundiária é um processo onde todos saem ganhando, e isso deveria ser conscientizado com ainda mais força aos próprios favelados, para que eles reivindiquem seus direitos com ainda mais autoridade.

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Property is important because people have different interests and because many of world's resources are scarce enough to the point that more than one person wants to use them at the same time. Land is one of these resources. The simplest way to deal with this problem - and used in great part of the history of man - is by force: if I can beat you up, the land is mine. Quoting David Friedman, today this method is used only by small children and large nations. A more sophisticated way to deal with it is by a system of rules that defines what belongs to whom, which we call private property.


With private property each owner can exchange their goods with eachother and with every trade there is creation of wealth, as the result of it is resources going to those who value them more. Lets say I have some land in the southern district of town but would like to live in the northern district. I trade my land with someone who lives in the northern district who wants to live in the southern district. Both parties win, both got wealthier with the trade, the lots went to those who valued them higher. Through this system of rules, each owner also has incentives to take care of their resources, as any damage caused to them means a direct loss. Lets also remember that these proprietors need not to be individuals but can also be associations, cooperatives, companies or any organized collective. The state itself can be considered a organized collective, but its way of survival not through free trade but through forced taxation makes it damage his own resources, as in case of bad administration losses can (and often are) dealt with higher taxes.


So how do we define property? Along history, many methods were used with this objective, going through who is physically or military stronger to defend a certain resource, who had access to the resource first or who transforms the resource into something more valuable. In my opinion none of these methods can be considered absolutely moral or correct, giving us the challenge to decide which are the most apropriate methods for our societies. What happens in practice today is that the more people or institutions recognize that someone owns something, more "legitimate" that property becomes - not to be confused with "fair", as I am not judging its moral value. It is interesting to notice that property naturally "emerges", usually before any state legislation. The peruvian economist Hernando de Soto, in his trips around the world studying shantytowns of all kinds, he writes that all of them had internal registries (usually in written form, even in the poorest countries) identifying who owned what.


In favelas and shantytowns property recognition exists, though limited to its physical space. For example, In Morro do Cantagalo in Rio de Janeiro, which I visited and will report on later in the posting sequence, each "shed" has a title and the history of owners registered in the Residents Association. The problem is that the state from both Rio de Janeiro and Brazil do not recognize these property titles, and forbids any instituion from recognizing them. This makes the Cantagalo slum excluded from the external world of trade between properties. If an institution wants to invest or trade with anyone living in the favela it cannot register these operations in her internal documents, making this an illegal act. Favela dwellers also don't have any incentive to invest in their houses as they aren't the owners in a legal sense. Despite many times having LCD TVs, cell phones and other nice consumer goods, their houses are always literally falling apart. After all, mobile goods can be taken with them in case the state removes them from there, which can happen anytime depending on the current political strategy.


So this generates what de Soto calls "dead capital" in his amazing book "The Mystery of the Capital". By his calculations (from the 90s) informal properties in Haiti add up to around U$5.2 billion. In Peru this number reaches U$74 billion, in the Phillipines U$133 billion, in Egypt around U$240 billion. The value in Brazil should be in this same scale. These numbers show that the money the residents of favelas earn by illegally using public energy and water facilities (which are constantly breaking down) is ridiculously small compared with the paralyzed capital they have. De Soto also explains the following on irregular entrepreneurs:
"Contrary to popular wisdom, operating in the underground is hardly cost-free. Extralegal businesses are taxed by the lack of good property law and continually having to hide their operations from the authorities. Because they are not incorporated, extralegal entrepreneurs cannot lure investors by selling shares; they cannot secure low-interest formal credit because they do not even have legal addresses; they cannot reduce risks by declaring limited liability or obtaining insurance coverage."
Some might grasp this whole situation and think: "But if this land is oficially owned by the government and I pay my taxes... I also want a piece of this wealth!", defending the eviction of the dwellers. This shortsighted vision is one of the things that most ruin land formalization programs and, as a consequence, society as a whole. Treating communities living in a certain place for dozens of decades that was uninhabited in the first place as invaders creates the social inequalities and tensions we see today. This kind of argument misses the fact that the state itself was established as an invader and probably the tribe that lived there before as well, and the sequence never ends. And anyway, even if the state did capture back this land it would only make bad use of this resource, as I explained a few paragraphs back. In other words, the social cost of maintaining the favelas irregular is much higher than if they are formalized, making clear that the benefits of formalization aren't only for the slum residents but for everyone surrounding them. What society should realize is that this is a process where everybody wins, and that this idea should be learned by slum residents themselves, so they can claim their rights with even more authority.