14.3.12

Houston, lenda do urbanismo de mercado / Houston, market urbanism legend

Houston: urbanismo de mercado? [Fonte]
Quem estudou em uma faculdade de arquitetura, onde quer que seja, já viu a imagem ao lado: um ângulo sinistro do centro de Houston, a maior cidade do Texas, nos EUA. Se percebe automaticamente a quantidade absurda de estacionamentos em uma das regiões mais valorizadas na cidade. “É assim a cidade que queremos?”, pergunta o professor. A dependência do automóvel e a perda da vida na cidade a pé, um dos assuntos mais debatidos no estudo de urbanismo, fica implícita para qualquer observador.

A maior cidade do estado conhecido como menos regulado (Texas) no país símbolo da livre-concorrência no mundo (EUA). Para o professor e para os alunos não resta dúvida: a vontade individualista do uso do automóvel e a especulação imobiliária capitalista usando terrenos como estacionamentos sem a devida regulação municipal é o que gerou esta catástrofe urbana. É um fato inquestionável que merece toda a atenção dos futuros planejadores urbanos para que isso não aconteça nas nossas cidades do futuro.

É definitivamente uma história motivante, e faz com que os jovens alunos se entusiasmem para controlarem suas cidade de forma sustentável. Infelizmente, ela é falsa.

Vou dar meio ponto para esta história: uma das regulações que Houston não possui é o que urbanistas americanos chamam zoneamento euclidiano (aqui chamado apenas de zoneamento), a divisão entre áreas residenciais, comerciais e industriais*. Por ser um dos tipos de regulação mais tradicionais, criou-se a lenda urbana de que não havia regulação alguma. Além do mais, hoje é difícil encontrar urbanistas que defendem esse tipo de zoneamento, e tanto na academia como na blogosfera se fala muito mais em usos mistos do que segregados.

O ponto fica pela metade porque em Houston existe zoneamento através de “covenants”, organizações de bairro que acordam entre si pelo uso do bairro. Porém, ainda que isto pareça algo voluntário e livre, Houston é uma das únicas cidades americanas onde o próprio município aciona os moradores que violarem as regras da comunidade, com o resto da cidade pagando pelas contas legais. Esse tipo de regulação torna a cidade apenas levemente menos zoneada, na prática, que cidades americanas que mantém regras de zoneamento euclidiano.

Mas vamos ao que realmente interessa, começando pela forma urbana. A legislação determina que as quadras tenham, no mínimo, 600 pés de comprimento, equivalente a 200m. Urbanistas que enfatizam o pedestre no planejamento recomendam quadras de cerca de 300 pés para esta qualidade urbana. Quadras compridas dificultam o trajeto dos pedestres já que não têm saídas para ruas adjacentes, obrigando-os a caminhar em um corredor. Jane Jacobs também comentou da importância desta característica no "Morte e Vida das Grandes Cidades Americanas":
“...frequent streets and short blocks are valuable because of the fabric of intricate cross-use that they permit among the users of a city neighbouhood.”
Outra característica em relação ao formato das ruas é a sua largura, ou perfil viário na linguagem técnica. É bastante evidente que quanto mais largas as ruas mais difícil é o trânsito do pedestre e do ciclista, já que os carros andam mais rápido e as ruas são mais demoradas e mais perigosas para atravessar. Em Houston, as avenidas devem ter 100 pés de largura (cerca de 30m) e as demais ruas de 50-60 pés (cerca de 20m). Para efeito comparativo, esta é a escala das grandes avenidas de São Paulo – locais onde não é preciso ser especialista para entender que é um ambiente hostil ao pedestre, lembrando também que as calçadas de Houston têm cerca de 1,5m de largura.

Não obstante, Houston foi um dos maiores alvos das teorias urbanas de uso do automóvel como forma de resolver problemas de transporte, amplamente abraçadas pelo setor público em praticamente toda a América no período pós-guerra. Nos anos 50 nos EUA foi dada a largada para o Interstate Highway System of America, ou o Sistema Interestadual de Estradas da América, considerado maior projeto público da história da humanidade, com 75,440km de estradas construídas e um custo de U$425 bilhões em dinheiro de impostos. Cidades do país inteiro se desenvolveram em direção aos arredores das cidades, os subúrbios, em busca do sonho americano de uma casa própria no meio de uma área verde com carros na garagem. No Brasil, tivemos a década dos viadutos, que cortaram cidades como Porto Alegre e São Paulo e, é claro, a construção de Brasília em 1957, uma cidade onde a calçada literalmente não existe.


 

Mas isso não foi suficiente para Houston. Mesmo entre as grandes cidades americanas Houston se destaca em gastos públicos em estradas em direção aos subúrbios, tornando a cidade cada vez menos densa e mais dependente do automóvel. Enquanto maioria dessas metrópoles possuem um anel viário (ou “beltway”) aos redor dos centros urbanos, Houston possui dois, e pode construir um terceiro. A cidade possui apenas 10% de população a mais que Boston com o dobro de freeways nos seus arredores. Projetos multibilionários da prefeitura para construção de mais estradas continuam sendo aprovados até o dia de hoje.

Mas a coisa não pára por aí. Uma das regulamentações que mais influenciou o urbanismo de Houston foi o tamanho mínimo dos lotes, que até 1998 era de 5000 pés quadrados para uma residência unifamiliar, que equivale a 460m2. Em São Paulo, os lotes regulares são de aproximadamente 10m x 15m – 150m2, podendo construir residências multifamiliares ou edifícios comerciais neste espaço. Esta legislação de Houston de anti-densidade e dispersão urbana (ou “urban sprawl”, no termo original), torna o uso de transportes coletivos virtualmente impossível, já que só para chegar até uma parada de ônibus o cidadão teria que caminhar muitas quadras. Aliás, todas as formas de transporte coletivo - táxis, ônibus, trens, bondes, etc. - são regulados em Houston, operados privadamente apenas por concessão municipal.

Agora adivinhe qual é a cereja do bolo regulatório de Houston que produz um centro cheio de estacionamentos? Uma lei sancionada em 1989 – lembrando da boa e velha tentativa falha do poder público de agradar seus cidadãos - obriga novas construções a terem uma quantidade enorme de vagas de estacionamento. Os números são muito mais altos que San Francisco que pede, por exemplo, 9 vagas para uma escola com 18 salas comparadas com 171 vagas em Houston. SF requer 1 vaga por residência, Houston requer 1.25-2 vagas. São Paulo, um belo exemplo de cidade orientada para o automóvel, exige 1 vaga para cada 35-50m2 em projetos não-residenciais, e um número chocante de 3 vagas por habitação caso a área tenha mais de 500m2. Felizmente existe um movimento hoje para remover a legislação de 1989, que infelizmente não acontece em São Paulo, Porto Alegre ou outras capitais brasileiras que mantém esta regras criadas para o conforto dos motoristas.

Houston em 1912, forma mantida até a década de 50 [Fonte]
Vale lembrar também que a cidade nem sempre foi assim. Desde o início do século 20 até antes do boom automobilístico incentivado pelas municipalidades – e em um ambiente urbano muito menos regulado – a cidade era mais próxima de um ideal de New Urbanism de hoje: prédios de várias alturas, usos mistos, densidade alta em relação à outras cidades da época.

Sendo assim, a imagem que vemos na sala de aula de urbanismo é apenas uma pequena parcela de uma cidade extremamente espalhada, onde maioria dos habitantes não tem outra opção de moradia senão isolados nos subúrbios e dependendo do automóvel para cumprirem suas rotinas. Após esta não tão breve pesquisa histórica e legal me parece claro que a causa disso não é a falta de regulação, mas sim um resultado um tanto óbvio dadas as regulações que foram implementadas pelo sim existente e atuante Departamento de Planejamento de Houston.

* Na prática isso ocorreria naturalmente sem regulação alguma, já que indústrias pesadas não têm incentivos para comprar terrenos em zonas valorizadas como centros urbanos. Já esses centros urbanos são beneficiados por terem uso misto por todo lugar, o que significa uma vida urbana constante.

Leitura adicional recomendada:
"How Overregulation Creates Sprawl (Even in a City without Zoning", Michael Lewyn
"Is Houston Really Unplanned?", Stephen Smith

-

Anyone who has studied in an Architecture school, wherever it might be, has already seen the picture on the left: a mindblowing angle of downton Houston, the largest city in Texas. One instantly notices the absurd amount of parking lots in one of the cities most valuable areas. "Is this the kind of city we want?", asks the teacher. Depending on the automobile and losing pedestrian street life, one of the most debated issues in urbanism today, is implicit to any observer. 

The largest city in a state known to be the least regulated (Texas), in the country which simbolizes freedom and deregulation to the rest of the world. For the teacher and his students the case is closed: the individualistic desire for the car and capitalist real-estate speculation using lots as parking without the needed municipal regulation is what generated this urban catastrophe. It is an undisputed fact which deserves full attention of future urban planners so this does not happen in our cities of the future.

It's definitely a motivating story, making young students enthusiastic to control their cities in a sustainable way. Unfortunately, it is false. 


I'll give half a point to this story: one regulation Houston does not have is euclidian zoning, the division between residential, commercial and industrial areas*. As it is one of the most traditional ways of urban regulation, it created the urban legend that no regulation existed at all. Nevertheless, today it's harder to find urbanists who support this kind of zoning, and on both academic and blog circles much more is said about mixed used than segregated uses. 

I won't give it a full point because in Houston there is covenant zoning, neighborhood associations that agree among themselves what kind of use it will have. But despite seeming voluntary and free, Houston is one of the few north-american cities where City Hall itself will act upon covenant residents who brake the rules, with the whole city paying for the legal bills. This kind of regulation makes the city just slightly less zoned, in practice, than american cities that maintain euclidian zoning rules. 

But let's talk about what really matters, starting with urban form. Legislation says that block should be at least 600ft wide, roughly 200m. Urbanists recommend pedestrian oriented planning to have blocks around 300ft. Long blocks make walkability hard as pedestrians don't have exists to adjacent streets, forcing them to walk along a hallway. Jane Jacobs also commented on the importance of this feature on "Death and Life of Great American Cities":

“...frequent streets and short blocks are valuable because of the fabric of intricate cross-use that they permit among the users of a city neighbouhood.” 

Another feature related to urban street form is the width, or the size of the "right-of-way" in technical language. It's pretty clear that the wider the streets the worst things go for pedestrian and cyclists as cars go faster and streets are harder and more dangerous to cross. In Houston, major avenues must be at least 100ft wide (around 30m) and regular streets around 50-60ft wide (around 20m). This is the scale of the large avenues in São Paulo - hostile places for pedestrians, and keep in mind Houston sidewalks are around only 4ft wide in average.

Houston was also one of the major targets of auto-oriented planning as a way to curb transportation problems, greatly embraced by the public sector in America, North and South, in the post-war period. In the 50's the US started the Interstate Highway System of America, considered the largest public project in the history of mankind, with 75,440km of roads build and a $425 billion in taxpayer money. Cities throughout the country developed away from city centers, today commonly known as the suburbs, towards the american dream of a townhouse in a green area with cars in the garage. In Brasil we had the overpass decade, cutting up cities like São Paulo and Porto Alegre and, of course, building Brasilia in 1957, the city where sidewalks literally are nonexistent. 

But this wasn't enough for Houston. Even among large american cities Houston is a top public spender in roads towards the suburbs, turning the city less and less denser and more automobile-dependent. While most american metropolis have one beltway around city centers, Houston has two and may build a third. The city only has 10% more residents than Boston with twice the number of freeways around it. Multibillion dollar projects for more road building continue to make the City Hall busy until today. 

But things go even further. One of the regulations that influenced Houston even more was minimum lot sizes, which until 1998 was 5000sqft for a single-family townhouse (around 460sqm). In São Paulo, regular lots are approximately 10m x15m (150sqm), with the possibility to build multi-family or commercial buildings in this space. This anti-density pro-sprawl legislation in Houston turns mass transit virtually impossible as residents have to walk many blocks just to get to the bus stop. And as a matter of fact, every single form of mass transit is regulated by City Hall, from taxis to buses to rail. 

Now guess what is the cherry on top of Houston's regulatory cake producing a downtown full of parking lots? The 1989 parking ordinance - the good old failed attempt of the public sector trying to please its citizens - mandating every new building to have loads of parkings spaces. The numbers are much higher than San Francisco which demands for 9 spaces for a high school with 18 classrooms against 171 spaces in Houston. SF demands 1 space per residence while Houston 1.25-2. In São Paulo, another great example of a traffic-oriented city (with small lots but with a historically strong zoning code) demands 1 space for every 35-50sqm in non-residential projects, and an astonishing 3 spaces per residence when it surpasses 500sqm. Good news is that there are plans on removing this parking ordinance, which unfortunately isn't being talked about in São Paulo, Porto Alegre or other brazilian capitals which maintain these rules created for the comfort of drivers. 

It's also worth remembering that the city wasn't always like this. Since the beginning of the 20th century until before the automobile boom incentivized by the public sector - in a much less regulated urban environment - the city was closer to the New Urbanism ideal of today: buildings of varying heights, mixed use and high density compared to other cities at the time. 

So the bottom line is that the image we see in urbanism classes is just a small part of an extremely sprawled city, where most residents have no other option of living if not isolated in the suburbs and depending on the automobile for their daily routines. After this not so brief legal and historical research it seems clear to me that the reason for this is not lack of regulation, but a pretty obvious result of the regulations enforced by the yes existing and enacting Houston Planning and Development Department

* In practice this would naturally occur with no regulation at all, as industries don't have much incentives to buy lots in expensive dense urban areas. Downtowns themselves benefit from a spontaneous and natural existence of mixed use, as this means constant urban life.


Additional recommended reading:
"How Overregulation Creates Sprawl (Even in a City without Zoning", Michael Lewyn
"Is Houston Really Unplanned?", Stephen Smith

2 comentários:

  1. Anthony,
    Na sua opinião, quais são as regulamentações aqui que prejudicam o desenvolvimento das cidades brasileiras? O Plano Diretor é uma dessas regulamentações?
    Obrigado.

    ResponderExcluir
  2. Cristiano, toda regulamentação urbana tem efeitos colaterais, muitas vezes não previstas pelos planejadores mas que tem efeitos ruins. As citadas neste texto também existem no Brasil, cujas cidades também foram afetadas por regras de zoneamento.

    Ainda, como comentei em posts anteriores, políticas de desapropriação e marginalização de comunidades, IPTU, códigos de edificações e corporativizaçao dos transportes públicos, exigindo licenças e concessões para existirem, todas prejudicam o desenvolvimento das cidades. Procurando no arquivo do blog tu encontrarás postagens sobre todos esses temas.

    Obrigado pela leitura!
    Abraços,
    Anthony

    ResponderExcluir