22.3.11

Fernando de Noronha: Ilha da Fantasia / Fantasy Island

Neste Carnaval, tive a oportunidade de visitar a ilha de Fernando de Noronha. Estando lá, aproveitei para conversar com alguns moradores sobre como funciona a moradia na ilha. Na volta resolvi pesquisar um pouco mais a fundo e escrever o que eventualmente resultaria neste post. Também pude coletar muitas informações do fantástico documentário “O Paraíso é Isso!”, da cineasta Ana Paula Teixeira, que mostra como é a vida dos moradores através de uma série de entrevistas. O DVD pode ser comprado através do seu blog, curtamuitodoc.blogspot.com.



Normalmente quando se fala em grandes riquezas naturais as pessoas rapidamente tendem a pensar no governo como admimistrador. A justificativa seria a preservação da natureza, impedindo o que chamamos de tragédia dos comuns: quando a ação de indivíduos agindo pela sua livre e espontânea vontade sobre um determinado recurso termina por extingui-lo, ao mesmo tempo em que não é do interesse de nenhum deles que isso aconteça. Entretanto, é difícil argumentar a favor de que o acesso à ilha seja totalmente proibido, sendo completamente preservada, sem ação ou benefício algum do homem. A ilha de Fernando de Noronha é então vista pelo observador externo como um exemplo da ação estatal, já que o número de turistas é bastante controlado e a rígida regulamentação do Estado permitiria um “equilíbrio perfeito” entre homem e natureza. O objetivo desse post é mostrar que não funciona bem assim.

A primeira coisa que me interessou em Fernando de Noronha foi a questão da propriedade dos terrenos. A ilha inteira é propriedade da União, fazendo com que ninguém seja dono de nada: todas as terras e edificações são apenas concessões aos usuários e moradores. Como era de se esperar, um morador me disse que nunca se deveria reinvestir na sua propriedade na ilha, sendo mais vantajoso enviar tudo que se ganha ao continente - afinal, pra quê valorizar sua propriedade se de fato ela não é sua? Então, para se obter a tal concessão, a pessoa deve ser moradora e cidadã da ilha, ou fazer sociedade com alguém que seja. Quando perguntei para um guia turístico sobre uma casa que avistei justamente na beira de uma das praias, ele me respondeu: “Não gosto de falar muito sobre isso. Alguns são mais favorecidos, outros menos, é assim que as coisas funcionam por aqui”: uma forte evidência da corrupção que existe no mercado imobiliário da ilha. Como bem escreveu o economista Rodrigo Constantino recentemente em seu blog, “a “função” precípua da burocracia brasileira é criar dificuldades legais para vender facilidades ilegais depois”. “O Paraíso é Isso!” mostra que os moradores também têm dificuldade de conseguir crédito em financiamentos bancários, já que eles não podem usar seu imóvel como garantia. Todo esse processo faz com que o custo da moradia lá seja altíssimo. Um dos entrevistados comenta que famílias de mais de 10 pessoas acabam morando na mesma casa para não precisar arcar com os custos burocráticos e as filas para se conseguir um terreno. Entre os noronhenses reina a informalidade sem fiscalização dos “puxadinhos”.

Outra coisa que chamou atenção foi a chamada Taxa de Preservação Ambiental, paga ao IBAMA por todos visitantes na chegada à ilha. A taxa atualmente custa R$40,40 por dia, por pessoa e, segundo relatos que obtive de um morador da ilha, apenas 10% fica na ilha, o restante é enviado à parte continental de Pernambuco, o estado de qual a ilha oficialmente faz parte. Este dinheiro se perde completamente no aparato burocrático estatal, com praticamente nada reinvestido em infraestrutura na ilha e na preservação propriamente dita. A minha estadia na ilha e as entrevistas feitas pela Ana Paula comprovam a situação: “Quando chove aqui em Fernando de Noronha é um estado de calamidade”, diz Ramon Fleischman, um dos entrevistados.

O documentário também revela alguns segredos da ilha, difíceis de serem captados em apenas alguns dias a turismo. Relatos assustadores de uma mãe mostram que o governo dificulta que os nascimentos sejam feitos na ilha, não levando profissionais para atendimento médico para atender as gestantes. Segundo ela, autoridades seguem essa política já que nascidos na ilha tem direitos de cidadão ou, traduzindo em uma linguagem mais direta, direitos à terra em Fernando de Noronha. Isso faz com que as gestantes tenham que ir até o continente para dar a luz, separando-a de sua família para o nascimento do bebê. O custo marginal de um atendimento médico, outra possível justificativa da política segundo a mãe, na minha opinião não justifica tal cruel restrição.

A ilha também não é nada sustentável como a administração estatal promete ser: cerca de 10 toneladas de lixo por dia são produzidas na ilha em alta temporada. Este lixo normalmente é levado ao continente de navio, mas muitas vezes acaba não acontecendo, sendo acumulados no lixão no caminho à praia da Cacimba do Padre. Pesquisando em sites de internet também descobri que a central elétrica funciona a diesel, tornando a ilha uma chaminé de gás carbônico. Os buggys, principal meio de transporte na ilha, também são extremamente velhos por terem um alto custo (quase 3x o preço de um buggy no continente, por causa da regulamentação), provocando assim vários acidentes e poluindo o ar com seus motores ineficientes e sujos.

O que também é chocante ao visitar a ilha é a tremenda desigualdade social entre os turistas e os moradores e trabalhadores da ilha. Diárias para hospedagem em quartos alugados em casas de família estão na faixa de R$350,00, e as pousadas melhores ficam na faixa de R$900,00, fora a TPA. Comida e água também são caríssimos, já que são trazidos do continente quase em sua totalidade. A ilha que é “de todos”, expressão muito usada quando se trata dos recursos naturais da União, acaba sendo acessível apenas para uma pequena elite, e o povo que trabalha para que isso aconteça fica na miséria.

Com todos esses problemas, a ilha ainda é usada como um "resort" para o alto escalão político do Brasil. O "Hotel de Trânsito de Oficiais", um casarão situado um dos pontos mais privilegiados da ilha, já possibilitou as férias de Guido Mantega, de José Gomes Temporão, de Carlos Minc, do ex-ministro Ronaldo Sardenberg (absolvido na semana passada por ação de dano ao erário por hospedar-se na ilha e usar aviões da FAB como transporte), de Fernando Henrique Cardoso e de Lula, entre outros políticos aqui não citados. Dilma também pretendia passar o Carnaval lá (quase me encontro com ela!), mas decidiu ir ao Rio Grande do Norte.

Hotel de Trânsito de Oficiais: resort da cúpula brasiliense

Sendo assim, da próxima vez que alguém perguntar o que fazer com um recurso natural precioso, pense duas vezes antes de dizer “governo”. Com ele, não caímos na tragédia dos comuns mas em outra: de preservação demais em algumas áreas aliada a políticas públicas absurdas ao se tratar de meio ambiente e políticas sociais. O Ministério do Meio Ambiente diz que tem “gente demais” na ilha, mas fica claro que o problema é a má utilização dos recursos e a ineficiência da administração. Mesmo em uma democracia, governos não agem de forma eficiente, mas sim respondem às demandas de grupos de pressão ou às demandas de um eleitorado que na maioria das vezes desconhece o resultado das políticas que ele mesmo propõe, como já expliquei em uma palestra que dei para uma turma de Ensino Médio sobre decisão coletiva. Por mais que queiramos acreditar que os recursos naturais podem ser bem administrados pelo poder público, exemplos práticos como o de Fernando de Noronha provam que é apenas fantasia.

-

This year I spent the Carnival in Fernando de Noronha. I took the opportunity to talk to some of the dwellers to learn what is like to live in the island. When I came back I decided to do some more research on the subject and write what eventually would become this post. I could also collect a lot of information from the amazing documentary "O Paraíso é Isso!" (meaning This is Paradise!), from filmmaker Ana Paula Teixeira, which shows many interviews with island residents. The DVD can be purchased through her blog, curtamuitodoc.blogspot.com.

Usually when the subject is large natural resources people quickly tend to think about the government as a manager. The reasoning for that would be nature preservation, preventing what we call tragedy of the commons. However, it is hard to argue in favor of complete access prohibition to the island, being completely preserved, with no human intervention at all. So Fernando de Noronha is usually seen by the outside observer as a good example of state action, as the numer of tourists is controlled and the strong government regulation would allow a "perfect balance" between man and nature. This post will show that things don't quite work that way.

The first thing that interested me in Fernando de Noronha was how property works. The entire island is owned by the Union (Federal State), which means that nobody owns anything: all land and buildings are merely grants given to users and residents. As it was expected, a resident told me that one should never reinvest in their property in the island, being more profitable to send everything you earn to the continent - after all, why invest in your property if it is not yours at all? So, to recieve such a grant, one has to be a citizen of the island or form a society with one who is. When I asked a tour guide about a single house I saw built right at the beach he answered: "I don't like to talk about it. Some are more favoured, some are less, this is how things work over here": a strong evidence of corruption in the island's real estate market. As Rodrigo Constantino recently wrote in his blog "the mais "function" of brazilian bureaucracy is to create legal obstacles to sell legal benefits afterwards". "O Paraíso é Isso!" shows that islanders algo have a hard time trying to get credit from banks, as they cannot use their houses as collateral. All this process makes living costs skyrocket. On of the interviewed said families with more than 10 people end up living in the same house to avoid bureaucratic costs and lines to get a piece of land. Between noronhenses (what these island dwellers are called), informal unregulated building is what reigns.

Another thing that caught my attention was the so-called "Nature Preservation Fee", payed to the federal enviromental agency by every visitor as soon as they arrive. The fee costs R$40,40 9 (around U$30 in today's currency) per person, per day. According to one of the island residents only 10% of this stays in the island, the rest being given to the continental part of Pernambuco, the state which the island is officialy part of. This money is completely lost in the bureaucratic process of state government, with practically nothing reinvested in the important need of infrastructure the island has. My stay in the island and the interviews made by Ana Paula verifys the situation: "When it rains here in Fernando de Noronha it is a state of calamity", says Ramon Fleischman, one of the interviewed.

The documentary also reveals some of the island's secrets, hard to be captured in only a few days of tourism. Frightning remarks by a mother show that government makes it hard for births to be taken place in the island by not sending medical professionals to attend pregnant women. According to her, authorities follow this policy as island-born people have citizenship rights: they have right to land ownership in Fernando de Noronha. This forces pregnant women to go to the continent to give birth, separating her from her family when the baby is born. The marginal cost of giving medical treatment, another possible argument for the policy according the the mother, does not justify this cruel restriction in my opinion.

The island is also not sustainable as state administration promises to be: around 10t of trash is produced every day during high season. This trash is normally taken to the continent by ship, but this not taking place from time to time accumulates huge piles of trash next to the path to the Cacimba do Padre beach. Searching the internet I also found out that the electrical plant is run on diesel, turning the island into a carbon dioxide chimney. The buggys, the island's main transportation method, are also extremely old because of their high cost (almost 3x the price of a buggy in the continent, because of regulation), causing many accidents and polluting the air with their inefficient and dirty engines.

What is also shocking while visiting the island is the huge social innequality between tourists and island residents. Accomodation in rooms rented by the residents are around R$350,00, while better lodging is around R$900,00/day. Food and water are also very expensive, as the majority of it is brought from the continent. The island which is meant to be "for everyone", a usual expression when talking about Federal natural resources, ends up being accessible only to a small elite, while the people working for it to happen stays poor.

With all these problems the island is still used as a holiday resort for the high scale politicians. The "Transit Hotel for Officials", a mansion on one of the islands most privileged places, has already housed many of Brasilia's ministers and all of the last presidents. Dilma was also thinking about spending her Carnival there (I almost met her!), but she decided to go to Rio Grande do Norte.

So the next time that someone asks what to do with a precious natural resource, think twice before you say "government". With it we do not end up with the tragedy of the commons, but in another: too much preservation in some areas associated with absurd public policies regarding the environment and social policies. The Environment Ministry says that there is "too much people" in the island, but it is clear that the problem is the bad use of resources and the administration's inefficiency. Even in a established democracy governments don't act efficiently: instead, they respond to pressure groups and the demands of an electorate that usually does not know the results of the policies they propose themselves. Maybe we want to believe that natural resources can be well administered by state authorities, but practical examples such as Fernando de Noronha prove that it is pure fantasy.

3 comentários:

  1. Parabéns pelo texto! É sempre bom investigar a realidade por trás do discurso.

    ResponderExcluir
  2. Como de costume, um excelente texto do nosso querido Anthony!

    ResponderExcluir
  3. Parabéns pela investigação, temos que estar atentos a estes corruptos.

    ResponderExcluir