13.9.11

Ruas gratuitas danificam as cidades / Free streets damage cities

"Vias públicas e gratuitas" são o que maioria dos urbanistas - e das pessoas também - hoje defendem. Esta é a regra vigente no Brasil atualmente, descrita no segundo artigo do Estatuto das Cidades:
"garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações;"
Existem várias maneiras de definir o que significa o "direito à rua", mas neste post estarei me referindo ao que acontece na prática, a socialização à força do custo de construção, manutenção e gerenciamento das ruas, diminuindo enormemente o custo de uso do usuário final, o motorista.

Mas porque elas danificam cidades? Não seriam ruas gratuitas algo bom, permitindo o acesso e o transporte de todos gratuitamente?

No estudo da crescente urbanização do mundo existe praticamente um consenso de que as cidades têm carros demais, e que deve existir incentivos para que mais transporte coletivo, cicloviário e a pé seja usado, tanto por motivos de perda de tempo em engarrafamentos como de poluição do ar, diminuição de qualidade de vida e custos econômicos bilionários. Também se sabe que esta grande conquista cidades pelos automóveis se deu através do pensamento positivista-modernista desde a década de 40 até o final da década de 70, influenciando governantes de praticamente o mundo inteiro a planejarem cidades voltadas para o automóvel, tendo este ápice no Brasil com a construção de Brasília. Nos Estados Unidos o planejamento se focou na realização do chamado "Sonho Americano", onde a ideia era que cada família poderia ter condições de ter sua própria casa em meio à natureza, que deu luz ao subúrbio americano. Para isso, o governo investiu massivamente em auto-estradas, tornando a população cada vez mais rarefeita e dependente do carro.

O problema é que por mais que haja uma mudança de paradigma do urbanismo modernista ao atual New Urbanism, que visa criar políticas para criação de ciclovias e de incentivos ao transporte pública, vejo poucos urbanistas querendo combater a raiz do problema: o fato dos motoristas dividirem o custo das ruas com o resto da sociedade.

As políticas urbanas atuais de "direito à rua" fazem justamente o contrário do que propõe um verdadeiro desincentivo ao automóvel: o estado está sempre correndo atrás do setor de construção civil tentando construir uma infraestrutura que dê conta do aumento da demanda pelo automóvel, os reguladores obrigam os construtores a adicionar prédios inteiros de estacionamentos acompanhando suas obras e novas estradas são um dos maiores focos dos programas de desenvolvimento econômico do estado. Parece até que as prefeituras fazem de tudo para que os motoristas tenham o máximo de conforto, incentivando cada vez mais o uso do automóvel.

O que nos leva às consequências da socialização do custo de um recurso - qualquer que este seja - tornando-o "gratuito" ao usuário final: o preço final dividido com todos acarretará em uma corrida para o seu uso, gerando filas. No setor público de saúde isso significa salas de espera lotadas, no trânsito isso significa engarrafamentos: leia-se filas de carros. Em economia este fenômeno é chamado de tragédia dos comuns, quando cada indivíduo agindo racionalmente buscando seu interesse próprio levam à superutilização de um determinado recurso.

Para corrigir este problema não existe mecanismo econômico e social mais fantástico para controle de oferta e demanda de um determinado recurso do que o preço. Quando preços são abolidos e os recursos coletivizadoss, como ocorrido na União Soviética, não há como trocar informação e decidir para onde os recursos devem ser direcionados, como explicado pelo economista vencedor do prêmio Nobel Friedrich Hayek no texto "The Use of Knowledge in Society". Na má sucedida experiência soviética, isso gerou com filas e entre 2.4 e 7.5 milhões de pessoas mortas de fome no genocídio de Holodomor. Preços são inerentes a uma economia de mercado, e uma maneira inteligente de precificar as ruas foi descrita pelo Stephen Smith do blog Market Urbanism, onde a maximização da renda leva à maximização do fluxo de tráfego.

Filas de carros e filas para pão na União Soviética: foto comparativa pelo Infrastructurist

O contra-argumento da precificação das ruas seria de que o pobre então não teria acesso ao automóvel, permitindo somente quem tem dinheiro o luxo do automóvel. Mas o fato é que não existe almoço grátis. Ruas são caras e pagas por pessoas, normalmente através da coerção estatal na arrecadação de impostos da população. Não há maneira do governo gastar dinheiro às custas de ninguém. Então, o que acontece na prática, segundo estudo do IPEA, é que no Brasil os pobres pagam 50% mais impostos que os ricos quando comparados relativos à sua renda. Estes impostos pagos pelos mais pobres eventualmente são usados para custear um sistema viário que eles nem sequer usam e que, pior ainda, nem sabem que pagam, segundo estudo da FIESP.

Os ônibus, lotações e táxis, um jeito muito simples de dividir o custo tanto da via como do veículo e comumente uma alternativa escolhida por aqueles que têm menos condições de comprar um carro, ficam presos no trânsito e acabam sendo os maiores prejudicados com os engarrafamentos, que socialmente provocam bilhões de reais e centenas de milhares de horas perdidas. Estas horas perdidas são, atualmente, o critério de uso do recurso, já que parece ser o maior custo de quem enfrenta engarrafamentos quilométricos. O que não se percebe é que ter mais tempo para gastar também é um critério que está associado a quem tem uma renda superior, já que tempo pode ser convertido em horas de trabalho.

Além disso, trabalhadores de salários mais altos normalmente ocupam um cargo de maior de criação mental do que de esforço físico, necessitando menos deslocamento e permitindo trabalhar à distância ou até mesmo de casa, algo impossível para um operário de fábrica, um obreiro ou faxineiro, que têm renda mais baixa. Morando longe dos seus empregos - na periferia dos centros urbanos - faz com que os engarrafamentos os prejudiquem ainda mais. Pessoas mais pobres acabam tendo que usar a motocicleta, ora como meio de transporte ora como ferramenta de trabalho - como motoboys - aumentando em quatorze vezes a chance de morrer no trânsito quando comparado com o automóvel. Também é ingênuo pensar que quem realmente valoriza um transporte mais rápido não o conseguirá de alguma outra forma, que tem como uma das resultantes o crescimento do transporte aéreo em São Paulo, cidade que possui a segunda maior frota de helicópteros do mundo, perdendo apenas para Nova Iorque.

Ainda, pensando na possibilidade de precificação de vias como outros produtos, com certeza existirão vias mais caras e mais baratas. É o mesmo conceito de pagar mais ou menos para uma refeição: existe uma gama imensa de alternativas de restaurantes e de mercados, para todos os bolsos. Indo mais além, se automóveis em si fossem coletivizados eles provavelmente não existiriam devido à escassez, ou então existiria apenas algo que nem o Lada, que também têm um preço no mercado "negro" cubano, e possuído apenas por cubanos mais ricos.



Hoje a precificação das ruas e o fim da bonança do carro não é algo apenas para especular. Políticas de taxamento de congestão, comentadas um ano atrás neste blog, já foram introduzidas em Londres, Estocolmo, Cingapura e Milão, possibilitando o início de sociedades em que motoristas não destroem as cidades às custas do resto da sociedade. O Streetsblog fez um comentário interessante sobre o sistema implementado em Estocolmo, que fez um teste de 6 meses do sistema antes de ser implementado: antes do teste 80% das pessoas eram contrárias à precificação, mudando para 42% após a implementação. Isso prova que maioria das pessoas não gosta apenas da ideia da taxa, já que o que antes era escondido nos impostos se torna transparente e direcionado aos próprios usuários, mas que na prática ela resolve grande parte do problema dos incentivos individuais que levam à tragédia dos comuns e aos danos às cidades.

Abaixo alguns links que se aprofundam no assunto:

Transportation Alternatives: Congestion Pricing

Artigo na Wikipédia sobre precificação de congestão

Artigo: London Congestion Pricing - Implications for Other Cities

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"Free public roads" is what most urbanists - and people in general - sustain today. This is the current rule in Brazil, described as the "right to streets" in the Estatuto das Cidades. There are many ways to define what "right to streets" means, but on this post I'll be referring what actually happens: the socializiation by force of the cost of building, maintaining and managing streets, greatly reducing costs for the final user, the motorist.

But why do they damage cities? Aren't free public roads good, making them accessible to all?

In the current study of the rising urbanization of the world there is practically a consensus that cities have too many cars, and that there must be incentives so that more people use collective transportation, bike and walk, for reasons such as heavy traffic, air pollution, lower quality of life in the city and billionarie economic costs. It is also known that this great car-invasion is due in Brazil to a modernist-positivist thinking from 40's to the late 70's, influencing governments to plan cities focused on the automobile, peaking with the construction of Brasilia. In the United States planning focused on the so-called "American Dream", where the idea was that every family could have their own house in a "green" environment, which gave birth to american suburbia. To make this happen, government spent massively in highways, making people more sparse and car-dependent.

The problem is that even though there was a paradigm-shift from modernist urbanism to New Urbanism, which aims to create policies to create cycling lanes and public transportation, I see few urbanists wanting to deal with the root of the problem: the fact that motorists share the cost of streets with the rest of society.

Today's urban policies that give "right to streets" make exactly the opposite of a true negative incentive to use the automobile: the state is always trying to keep up with the building sector to provide enough infrastructure for the rising demand for cars, regulators demand builders to add huge parking buildings with their projects and new roads are one of the state's main economic development strategies. It even looks like city halls make everything in their power so that motorists have maximum comfort while driving, incentivizing even more automobile usage.

What brings us to the consequences of socializing the cost of a resource - whatever it is - making it "free" to the final user: the final price divided by everyone will create a 'run' to use it, generating lines. In the public health sector this means cramped waiting rooms, in traffic this means a traffic jam: lines of cars. In economics this phenomenon is called the Tragedy of the Commons, where every individual pursuing his own interest will lead to the overusage of a resource.

To correct this problem there is no economic and social mechanism more effective to control supply and demand than prices. When prices are abolished and resources are collectivized, as happened with food in the Soviet Union, there is no way to exchange information on where resources must flow, as explained by Nobel-prize winning economist Friedrich Hayek on "The Use of Knowledge in Society", leading to the same problem we have in traffic today. In the sad result of the USSR this lead to the mass starvation of Holodomor, with between 2.4 and 7.5 people killed by famin. Prices are inherent to a market economy, and a smart way to price streets was commented by Stephen Smith at Market Urbanism, where maximized revenue leads to the maximization of traffic flow.

The rebuttle to pricing streets usually is that poor people wouldn't have access to automobiles, leaving it only to richer people the luxury of the car. But the fact is that that there is no such thing as a free lunch. Streets are expensive and paid by people, usually by state coercion by charging taxes from the people. There is no way for government to spend money by charging nobody. So what happens in Brazil is that the poor pay 50% more taxes than the rich when compared relative to their earnings. These taxes paid by the poor eventually are used to pay for a street network that they don't even use and, even worst, don't even know they are paying for it, as most people don't even know they pay these taxes.

Buses and cabs, an easy way to share the costs of streets and vehicles an commonly an alternative chosen by those that can't afford a car, get stuck in traffic and end up being the most badly injured by traffic jams, which socially cost billions, and hundreds of thousands of hours lost. Hours spent in traffic are today's criterion for using the resource, as it seems to be the largest cost for those who face mile-long jams. What isn't noticed is that having time spent in traffic is also a criterion associated with larger income, as time spent can be converted in work hours.

Furthermore, higher paid individuals usually have a higher creativity-demanding and lower physical-demanding job, making it easier to work from a distance or even from home, impossible for a blue collar worker or a housemaid, usually with lower income. Living away from their jobs, usually in urban outskirts, makes traffic jams harm them even more. Poorer people end up driving motorcycles, either as transportation or as a work tool - as deliverymen - increasing fourteen times the chance of dying in traffic when compared with driving a car.

Still, thinking on the possibility of pricing streets as other products, there will surely be cheaper and more expensive streets. It is the same concept as paying more or less for a meal: there is a huge selection of restaurants and markets, for every wallet. Furthermore, if automobiles themselves were collectivized they probably wouldn't exist due to shortages, or we would only have something like the Lada, which also has a price in the cuban "black" market, and is owned by richer Cubans.

Is is also naive to think that who really values a faster transportation won't get it by any other means, which has as a result the growth os air transportation in São Paulo, which has the second largest helicopter fleet in the world, losing only to New York.

Today the pricing of streets and the end of the driving bonanza isn't something to speculate about. Policies of congestion pricing, commented a year ago in this blog, have already been introduced in London, Stockholm, Singapore and Milan, making possible the beggining of a society where motorists don't destroy cities at society's expense. Streetsblog made an interesting comment on Stockholm's system, which had a 6-month trial before it was official: before the trial 80% of the population was against pricing, changing to only 42% afterwards. This proves that people just don't like the idea of pricing, as what was before hidden in taxes becomes transparent and directed to the final user, but that in practice it solves a huge part of the incentives leading the the tragedy of the commons and the damage to cities.


Below more links on the subject:

Transportation Alternatives: Congestion Pricing

Wikipedia article on Congestion Pricing

Article: London Congestion Pricing - Implications for Other Cities

3 comentários:

  1. Gabriel L.W.18/9/11 12:05 PM

    Muito interessante.
    Legal esse dado dos 80% contrários que se tornaram 42%.

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  2. Anthony, parabéns pelo blog. Alta qualidade na argumentação e informação.

    Quanto ao assunto, afirmo (um tanto jocosamente, confesso) que a maior realização das administrações petistas em Porto alegre foi a implantação do estacionamento rotativo, que vai ao encontro do conceito de precificação.

    Infelizmente o mesmo não foi expandido para a maioria das vias com vocação comercial, permitindo que o péssimo hábito da ocupação de uma vaga por turno ou dia se mantenha.

    Junto disso, a gestão amadora que a EPTC 'exerce' permite o estacionamento (não rotativo...) quase que indiscriminado em ambos os lados das vias, causando a 'esclerose' do canal - o congestionamento (ex: Pedro Ivo, rota alternativa sempre congestionada nos horários de fim e início de turno).

    Enfim, muito a evoluir...

    Abraço.

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  3. @Eduardo GalvãoObrigado pelo elogio, professor! Fico feliz em saber que também eres um leitor.

    Quanto aos estacionamentos, realmente é a mesma lógica. Não só as ruas mas as vagas de estacionamento também são tornadas gratuitas, provocando o mesmo efeito. Ainda, um sistema ainda superior ao simples tarifamento seria preços diferentes em vias e horários diferentes, ajustando-se à demanda. Mas claro que não passa de teoria aqui pela Brazilândia.

    Grande abraço!

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