18.10.13

Resposta ao Movimento Tarifa Zero

Depois de algum tempo sem falar sobre o assunto do "passe livre", navegando na internet me deparei com um extenso artigo escrito pelo coletivo Movimento Tarifa Zero de Goiânia chamado "Para o desânimo de quem canta o fracasso, fim da tarifa zero em Hasselt nos anima", um contraponto à um artigo que escrevi onde defendi a inviabilidade da medida. Fico muito feliz pela leitura detalhada do meu texto e pela existência de bons argumentos diferentes dos meus em um ambiente aberto como a internet que, felizmente, me dá o direito de resposta aos autores, que segue abaixo.

-

Caro Movimento Tarifa Zero de Goiânia,

Em nenhum momento "cantei o fracasso" nem "celebrei" o fim da tarifa zero em Hasselt, como vocês mencionam em diversas ocasiões no seu artigo. Simplesmente tentei explicar porque eu acredito que ele não funcionou lá e porque ele não funcionaria em nenhum outro lugar. Pelo contrário, eu estaria muito feliz caso ele funcionasse, já que teríamos, enfim, um meio de transporte isento para o usuário.

Vocês também se referem bastante à ideologia, algo que sempre tento deixar de lado quando escrevo, tanto minha quanto daqueles que defendem ideias diferentes. Faço isso pois não gosto de enviesar a abordagem de uma questão técnica por causa de uma posição ideológica. Não me importa se quem defende uma determinada medida é comunista, socialista, direitista, esquerdista, capitalista, neoliberal, libertária ou anarquista: me interessa as ideias que a determinada pessoa está defendendo e se elas parecem ou não fazer sentido e ter bons resultados. Na minha opinião é totalmente irrelevante a crença ideológica do articulista ao de defender uma determinada forma de gestão de transporte coletivo.

Em seguida, vocês me associam indiretamente à ANTP e ao ditador Augusto Pinochet já que meu artigo ter sido republicado na página da ANTP e porque usei a frase "Não existe almoço grátis", respectivamente. Começando pela ANTP, desde que eles começaram a publicar alguns de meus artigos no seu site eu troco e-mails questionando o modelo de concessões à empresários, perguntando qual o motivo de pequenos empreendedores de transporte não poderem transportar passageiros e concorrer com estas empresas. Jane Jacobs já dizia que este modelo era muito mais interessante, já que gera uma grande variedade de opções para os passageiros. Ou seja, não tenho nenhum tipo de relação com a ANTP muito menos sou "pró-patronal e pró-empresas". Em seguida, eu nunca apoiei a ditadura chilena - nem nenhuma ditadura - e não há motivo algum para vocês sequer mencionarem um ditador associado à algo que eu falei senão para artificialmente prejudicar minha imagem perante o leitor. Ou seja, me parece bastante injusto me associar a tais conceitos corporativistas e autoritários enquanto dedico tanto tempo tentando combatê-los, e todos os artigos que eu escrevi até hoje são prova disso.

Indo adiante na sua crítica ao meu uso desta frase, deixei de discorrer sobre o financiamento do passe livre pois achei suficiente para este tema o problema de planejamento, que discorrerei mais a fundo em seguida. Mas então aproveitando a oportunidade para respondê-los, no site do Movimento Passe Livre onde li seu artigo está descrito o seguinte formato para este fundo:
"A tarifa zero deverá ser feita através de um Fundo de Transportes, que utilizará recursos arrecadados em escala progressiva, ou seja: quem pode mais paga mais, quem pode menos paga menos e quem não pode, não paga. Por exemplo: o IPTU de bancos, grandes empreendimentos, mansões, hotéis, resorts, shoppings etc., será aumentado proporcionalmente, para que os setores mais ricos das cidades contribuam de maneira adequada, distribuindo renda e garantindo a existência de um sistema de transportes verdadeiramente público, gratuito e de qualidade, acessível a toda a população, sem exclusão social."
A medida é intencionalmente redistributiva, mas me parece ser muito difícil medir isso conforme os exemplos citados: quem normalmente são os donos de grandes empreendimentos, hotéis, resorts e shoppings? Em muitas ocasiões são fundos imobiliários de adesão voluntária formados por milhares de pequenos investidores, onde a soma deles gera um grande "bolo" que é gerido e investido em tais empreendimentos, com o retorno distribuído entre estes milhares de pequenos investidores, não necessariamente ricos. Maioria das pessoas que trabalham nestes lugares também não são ricas, sendo seu salário dependente da viabilidade financeira destes projetos. Já bancos atualmente são entidades quase estatais dada a sua característica concessionária de operação em um mercado com altas restrições à concorrência (um pouco como as atuais empresas de ônibus em São Paulo e maioria das cidades brasileiras). A questão, para mim, não seria taxar IPTU de bancos mas simplesmente terminar com seus subsídios e proteções legais, permitindo que seus clientes optassem por outros bancos, que cobrem taxas e condições menos abusivas, e mantenham seu dinheiro para fazer o que bem entenderem - inclusive gastar em transporte. Por fim, quando vocês falam sobre as mansões, ao meu ver a lei de IPTU pressupõe que moradores de grandes imóveis são necessariamente ricos, o que não é verdade. Um grande imóvel pode acomodar uma grande família ou mais de uma família, em que a renda per capita não é necessariamente alta. Dependendo da localização do imóvel (cujas qualidades variam constantemente) ele também vai ser mais barato ou mais caro, e o valor venal (usado para calcular o IPTU) é pouco preciso neste sentido: um determinado imóvel frequentemente paga um IPTU muito mais alto que um imóvel de menor valor de mercado, e vice versa, com relação menor ainda pelo seu tamanho. Ainda, um cidadão extremamente rico pode ser proprietário de milhares de imóveis de baixo valor espalhados pela cidade, o que esta medida também deixa de contabilizar. Sem contar ainda fatores como diferença de renda, patrimônio bancário, acionário e de outras propriedades físicas de alto valor como carros, equipamentos eletrônicos e até obras de arte, invisíveis ao IPTU, me parece claro que o tamanho de um determinado imóvel está longe de sinalizar se um determinado cidadão é mais ou menos rico.

Pergunto também como seria a gestão deste fundo, já que vocês comentam que não seria de uma forma centralizada. A ideia de vocês é se organizar "de maneira autônoma, horizontal, sem hierarquias e com votos diretos e igualitários", pois vocês são "a esquerda libertária que critica o Estado como forma de organização da classe capitalista.". Ou seja, pelo que entendi o gestor deste fundo não seria um burocrata estatal nem um financista capitalista, correto? Pergunto se haveria uma votação para escolher onde estes recursos seriam aplicados, e qual o incentivo dos participantes para tomar boas decisões de aplicação destes recursos. Existe algum exemplo de fundo que funcionou desta maneira? São dúvidas sinceras que me deixaram curioso em relação à este modelo de Fundo de Transporte totalmente horizontal.

Em seguida vocês se colocam como contraponto ao modelo dominante, deixando implícito que eu estou à favor do modelo dominante. Novamente: eu nunca me posicionei à favor do modelo atual de concessões, sendo um grande crítico em relação ao sistema sempre que possível. Eu acredito que um sistema que permite empreendedorismo e concorrência - a inovação de forma descentralizada em um sistema de transporte coletivo, seja ele através de ônibus, vans ou táxis - é superior ao modelo atual. Assim como vocês, sempre me posicionei contra a manutenção dos interesses políticos dos empresários do transporte coletivo, mas nem por isso proponho a mesma solução.

Em relação ao meu último parágrafo, não tentei de forma alguma ridicularizar os militantes do Movimento Passe Livre, mas sim inclusive continuar à minha crítica ao sistema vigente: por maior o esforço de pessoas conectadas e engajadas nacionalmente como o MPL, infelizmente há pouco ganho na batalha. Como proponho uma reformulação diferente, acredito que se houver uma estatização e centralização maior ainda no sistema as manifestações terão que ser ainda maiores (e infelizmente repressões ainda maiores), para conseguir conquistar batalhas como uma redução no valor da passagem. Novamente, acredito que é um sistema que tende a ser ineficiente na questão de planejamento até entender como funcionaria esse planejamento horizontal que vocês propõem.

Depois, quando eu "calculo variáveis" de forma alguma os faço de forma precisa e matemática "na ponta do lápis". Mas me parece bastante razoável afirmar sobre a dificuldade de controlar tais variáveis em um ambiente complexo como uma cidade e que os benefícios de Hasselt não foram unicamente em relação à tarifa, já que um grande plano de mobilidade foi implementado. É apenas uma questão natural de tentar estimar os benefícios e prejuízos de uma determinada gestão de transporte baseado nas nossas observações da realidade, assim como vocês o fazem defendendo o modelo do passe livre: uma defesa baseada na crença em resultados melhores, usando uma série de justificativas e exemplos empíricos. Até mesmo o transporte em Lima que usei como exemplo realmente não é nenhuma panaceia e apresenta uma série de problemas, que fui um pouco mais a fundo em um artigo que publiquei em seguida chamado "Em Defesa de Lima". No entanto, não entendi quando vocês falaram sobre a redução da passagem nesse caso estar relacionada à falta de estímulo ao trabalho e a consequente emigração de trabalhadores. No meu entendimento de como funciona o sistema de preços, o seu principal determinante é a demanda em relação à escassez do recurso em questão, e desconheço casos onde há um monopolista (falta de concorrência) e não haja escassez do recurso e/ou o consequente aumento de preços. Por outro lado, o aumento da concorrência pressiona os preços para baixo, por isso tal observação em relação ao sistema implementado em Lima.

Nos seus últimos comentários vocês também propõem uma participação popular nas decisões. Novamente, eu gostaria de entender como funcionaria essa participação: seria através de votações, de assembleias, pela internet? Quem as organiza? Há alguém que reúne as informações da população e em seguida toma decisões sobre elas? Sobre quais temas a população decidiria desta forma, apenas sobre o valor da tarifa ou sobre características técnicas dos ônibus e outras particularidades? Mais importante ainda, quais os incentivos que a população tem para expressar opiniões responsáveis e coletivas e não auto-interessadas? Faço todas essas perguntas pois no sistema que proponho todas estas informações já estão embutidas nos preços dos recursos, no caso, da passagem do ônibus, uma cooperação descentralizada brilhantemente explicada pelo texto "O uso do conhecimento na sociedade" escrito pelo Friedrich Hayek. Os problemas orçamentários enfrentados pelo transporte coletivo em Hasselt que vocês mencionam sequer seriam um problema neste caso, já que retirando-o da esfera pública eles pouco teriam a ver com as autoridades ou as contas públicas. Recentemente em Detroit, cidade que decretou à falência com consequências sérias ao transporte coletivo público, um empreendedor desafiou a legislação e abriu uma empresa chamada Detroit Bus Company, atendendo a demanda existente e preenchendo o vazio deixado pela administração pública. Inclusive, em parceria com uma ONG, ele conseguiu de forma totalmente privada estabelecer o passe livre para estudantes, bancado voluntariamente por aqueles que gostariam de facilitar a vida de quem vai à escola. Nada de impostos tomados à força.

Quanto ao prejuízo dos trabalhadores belgas na adaptação do país à zona do Euro também concordo: é algo que está errado e que poderia ser diferente. Na mesma lógica da descentralização, pa mim a Bélgica nem deveria fazer parte da Zona Euro, nem Hasselt parte da Bélgica, administrando seus próprios recursos e estabelecendo o passe livre se for algo sustentável para o Município, sem precisar seguir normativas injustas de uma entidade superior. No entanto, não parecia ser o caso, já que Hasselt necessitava de recursos subsidiados por outras cidades belgas para sustentar o passe livre a nível municipal: justamente por isso sofreu com os cortes orçamentários a nível nacional.

Enfim, novamente agradeço sua atenção para ler meu artigo e conversar sobre o tema. Caso decidam responder eu pediria apenas uma resposta sobre a questão em si, referindo-se menos à ideologia e isenta de associações indiretas à ideias que estou longe de defender.

Abraços,
Anthony Ling

Nenhum comentário:

Postar um comentário