4.5.14

Cidades brasileiras: a pior verticalização do mundo

Recentemente escrevi um artigo em defesa da verticalização - a construção de edifícios mais altos - respondendo a outro artigo que se posicionava contra ela. Na ocasião deixei explícito que eu estava tratando sobre a construção de edifícios altos como resposta a uma maior demanda por território (muitas pessoas querendo morar no mesmo lugar) e não estava tratando sobre a verticalização brasileira por uma série de distorções que existem no nosso mercado imobiliário. Embora isso tenha ficado bastante claro, o debate que se seguiu continuou criticando meu texto usando o exemplo da verticalização brasileira quase como uma regra absoluta de o que significa verticalização, apesar de ele ser uma exceção.

Assim, pretendo aqui complementar meu texto anterior explicando porque a verticalização nas cidades brasileiras realmente produz resultados negativos, mas mostrando que a crítica está mal direcionada: o problema não é a altura dos prédios em si (verticalização), mas as interferências regulatórias que eles carregam para se tornarem altos.

Recuos de ajardinamento

Um dos maiores vilões da verticalização brasileira são os recuos de ajardinamento obrigatórios, afastando os edifícios das calçadas e entre eles. A noção parte de um conceito equivocado de ventilação e insolação que remete tanto à antiga teoria da "miasma" quanto ao urbanismo modernista-corbusiano na ideia de liberar o solo para áreas de lazer - resultando em áreas condominiais inutilizadas. Nem mesmo Brasília, que foi mais fiel à este conceito na construção das superquadras, teve bons resultados no aproveitamento destes espaços.

Nas cidades brasileiras os recuos quase sempre aumentam de acordo com a altura do edifício, motivo pelo qual incorporadores nem sempre atingem a altura máxima permitida no terreno: teriam que construir um palito para respeitar os recuos.

Nem sempre verticalização significa aumento de densidade.
[Fonte imagem: Urbanidades]
Restringem densidade: O conceito de verticalização faz sentido como uma forma de aumentar o aproveitamento do solo urbano, aumento a densidade demográfica, aproximando humanos e tendo ganhos de escala no uso do espaço e da infraestrutura construída. No entanto, com recuos obrigatórios, não é incomum encontrarmos casos de bairros verticalizados que não apresentam altas densidades. Em São Paulo, por exemplo, é incomum o cidadão perceber que a Vila Mariana é muito mais densa que Moema, que a Vila Madalena não ficou mais densa depois que verticalizou, ou que Paris e Barcelona são muito mais densas que São Paulo com edifícios muito mais baixos. Já em Porto Alegre, pessoas ficam confusas ao saberem que a Cidade Baixa tem o dobro da densidade do Bela Vista, onde a confusão ocorre inclusive nos seus nomes. Com edifícios isolados nos terrenos há área inutilizada, que normalmente se transformam em áreas privadas de lazer abandonadas. A verticalização ocorre sem produzir aglomeração, o que seria o motivo da verticalização em primeiro lugar.

Exterminam a vida na calçada: Com edifícios longe das calçadas e uns dos outros é muito difícil viabilizar atividades comerciais no térreo, comum em outros países pelo fato do térreo ter um valor comercial mais alto que o residencial. Mas esse valor comercial só se torna realmente atraente quando há continuidade das lojas na calçada e uma proximidade delas do pedestre, facilitando o acesso e a leitura das vitrines. Não coincidentemente esta é exatamente a forma de qualquer rua comercial de sucesso com pontos valorizados - assim como o interior dos shopping centers.

O Itaim Bibi, em São Paulo, é agradável para transitar a pé graças
às pequenas casas que sobraram junto à calçada. Prédios novos são
afastados do pedestre e tem térreos vazios, quando não cercados.
Desincentivo para construir no térreo

Pouca gente sabe, mas em muitas cidades brasileiras - como São Paulo e Porto Alegre - a área do térreo não é contabilizada como área construída se nele for construído apenas a portaria e áreas condominiais. Com os recuos a área do térreo já nasce desvalorizada, que também naturalmente tem menos demanda para uso residencial. O incorporador, assim, prefere usar toda essa área que ele subtrai do térreo para cima, nos andares "tipo", aumentando a altura do edifício e deixando o térreo vazio, prejudicando ainda mais a vida na calçada.

Vagas de garagem obrigatórias

Cidades brasileiras normalmente possuem legislações que obrigam o incorporador a construir um determinado número de vagas de garagem para cada unidade residencial ou de acordo com o tamanho da área comercial construída, número que também varia de acordo com a "classe" do empreendimento (empreendimentos de luxo devem construir mais vagas). Isso normalmente significa, em edifícios residenciais: garagens subterrâneas que aumentam o custo da obra; uma ocupação do térreo que teoricamente deveria ser usada como área de lazer; ou um novo incremento na altura do prédio quando não ela não é subterrânea, como é o caso em muitos edifícios ao redor da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. Em grandes edifícios comerciais, muitas vezes isso significa ainda a construção de um grande edifício garagem especificamente para o empreendimento, não por decisão única do empreendedor mas para cumprir com a legislação imposta. Ou seja, a verticalização deve obrigatoriamente dar comodidade a quem anda de carro, ocupando grandes áreas urbanas para armazená-los e impedindo aqueles que não possuem carro de não pagar por uma vaga.

Exclusão urbana e incentivo ao carro

Sem vida nas calçadas, os edifícios finalmente decidem construir cercas para se protegerem do ambiente inóspito que é criado na rua. A monotonia ou dificuldade de se andar a pé nas cidades aliada a calçadas inseguras e legislações que promovem a construção de garagens se tornam um grande incentivo ao uso do carro e à exclusão urbana. Cidadãos se tornam condôminos ilhados que vão de um ponto a outro sem interação alguma com outros espaços da cidade, característica que foi regra em toda história do ser humano em cidades e que foi perdida nas últimas décadas.

Benefícios privados, prejuízos sociais

Diferente de cidades de outros países, um ponto positivo das nossas cidades são os mecanismos sofisticados para pagar taxas ao poder público para que se construa acima do limite permitido na legislação. Ao invés de simplesmente proibir o desenvolvimento as prefeituras cobram pelo uso adicional da infraestrutura pública e pelos potenciais prejuízos que podem ser causados na região. Em São Paulo isso se chama "outorga onerosa" e em Porto Alegre se chama "solo criado". É uma maneira razoável de tornar a operação mais justa, sem que se privatize benefícios gerando custos sociais.

No entanto, a regulação urbana no Brasil sempre foi um tanto flexível. Planos diretores são atualizados e bairros mudam seu zoneamento com o passar do tempo, normalmente pressionados por grupos de interesse que possuem terrenos em locais estratégicos. Estes grupos praticam o "lobby", ajudando políticos (publicamente ou secretamente, financeiramente ou movimentando massas eleitorais) para que defendam mudanças em seu benefício. O relacionamento pode ser feito com vereadores, que normalmente votam nas mudanças no Plano Diretor que podem modificar o potencial construtivo de grandes áreas permitindo mais construção sem outorga onerosa. O Poder Executivo também pode ser influenciado para direcionar novas obras de infraestrutura para regiões onde estes grupos tem terrenos, aumentando seu valor no mercado.

Transformação radical

É comum que essas mudanças legislativas ocorram de forma radical para a característica urbana do bairro. Um determinado bairro zoneado para pequenas residências unifamiliares frequentemente tem sua legislação alterada para permitir grandes edifícios de noite para o dia, sem que haja uma transformação gradual deste cenário. Não é incomum vermos conjuntos de prédios altos surgirem no meio de pequenas casas, criando contrastes que não se vêem com tanta frequência em outros países. Transformações radicais também podem acontecer em cidades menos reguladas de forma geral, mas é mais comum que o ajuste do bairro em relação à demanda ocorra de forma mais gradual, com a verticalização irradiando de pontos de alta atratividade - alta demanda - e gradualmente diminuindo para zonas de menor demanda.

O bolsão de baixa densidade dos Jardins, em São Paulo, restringe a
demanda da região mais atraente da cidade, gerando alguns dos imóveis
mais caros do país, tanto dentro do bairro como nas suas adjacências.
Aumento de preços: atratividade localizada e oferta restrita

Quando um determinado bairro ou conjunto de quadras se verticaliza sua atratividade normalmente aumenta, tanto pela renovação da infraestrutura e a introdução de novas amenidades de comércio quanto pelo aumento da densidade (que nem sempre necessariamente ocorre, como vimos anteriormente), que por sua vez aumenta o número de atividades no mesmo local, atraindo ainda mais pessoas. Esses fatores geram um aumento na demanda de pessoas de outros bairros ou ainda de outras cidades por aquele espaço, pressionando o aumento de preços apesar do aumento da oferta com as novas construções.

No entanto, estes bairros ou conjunto de quadras normalmente são espacialmente restritos, assim como o potencial construtivo limite da legislação vigente. Assim, a oferta é restrita antes do bairro se beneficiar da lei de rendimentos decrescentes, que provocaria uma diminuição nos preços. Para ilustrar essa situação, considere o seguinte exemplo: os primeiros prédios que virão junto dos primeiros supermercados, agências bancárias ou restaurantes vão contribuir para valorizar o bairro, mas a centésima torre junto ao quinto banco provavelmente nem será percebida. Seria nesse ponto que o aumento da oferta no mercado venceria o efeito das amenidades responsável por aumentar os preços – e os preços começariam a cair – mas normalmente existe um limite que restringe que elas surjam.

Verticalização, assim, é relacionada com o aumento no preço dos imóveis, embora no contexto geral esteja contribuindo para o aumento do estoque imobiliário, o que aumenta a oferta e diminui o preço. Como outro exemplo para explicar este efeito, todo novo morador de uma nova unidade está deixando um imóvel anterior: se ele está partindo buscando um lugar melhor para morar e não por necessidades financeiras, o imóvel de onde ele parte perdeu atratividade perante seu novo bairro. Um imóvel pode ter se tornado mais caro, mas outros, em outras regiões, acabam ficando mais baratos. Usando um exemplo extremo e impossível como ilustração, se um incorporador construísse um edifício com 1 milhão de unidades o preço dos imóveis naquela região iria despencar, já que se tornaria muito menos escasso.

Centro de São Paulo na década de 50: verticalizado,
popular e com calçadas vivas.
Um fenômeno local e recente

A verticalização raramente ocorre com todas essas variáveis que encontramos no Brasil. Ao olharmos cidades que se verticalizaram para atender uma crescente demanda por espaço, como Nova Iorque ou Hong Kong, percebemos a inexistência de maioria dessas restrições. Isso gera nessas cidades uma aglomeração acessível e sustentável, conforme comentei na minha postagem sobre os benefícios da verticalização.

Cidades brasileiras tiveram uma verticalização muito mais saudável no passado, abandonada ao longo do tempo. As primeiras zonas a se verticalizarem intensamente, como o centro de cidades como São Paulo e Porto Alegre ou o bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro, não tinham recuos obrigatórios, incentivos para não ocupar o térreo nem vagas mínimas de garagem, além de ter legislações urbanas menos zoneadas de forma geral, com menos desigualdade de regras na hora de construir.

É engraçado de ver que o que provocou a suburbanização e a fuga desses bairros no passado é justamente o que as pessoas buscam hoje na procura de um imóvel: mais densidade e atividade urbana, mais facilidade de andar a pé e menos dependência do carro, apartamentos menores e preços mais acessíveis. Não é coincidência que o Centro de São Paulo foi um dos bairros que teve maior crescimento populacional, com taxas semelhantes às periferias, em um movimento para reocupar este espaço de qualidade mas esquecido.

O movimento contra a verticalização de 50 anos atrás tinha motivos muitos diferentes dos atuais, pois naquela época o resultado urbano da verticalização era muito alinhado aos objetivos daqueles que a criticam hoje. Infelizmente, as legislações que foram sendo acumuladas ao longo do tempo e que estão invisíveis ao cidadão comum criaram uma nova forma de construir para cima diferente dos centros antigos, provocando uma noção equivocada do que significa verticalizar.

4 comentários:

  1. Isto tudo só comprova a minha sensação de deixar os donos de terra acharem que podem definir as questões urbanas. As relações devem ser avaliadas por funcionários que possuem a total compreensão da dinâmica da cidade (públicos e planejadores que tem a obrigação de fazer e não fazem reclamando do salário). Cada dia fica mais claro em minha mente o quão descontrolado é nosso planejamento (inexistente na verdade?!) e o quanto a nossa politica é individualista, pois se planejássemos e seguíssemos nossas leis corretamente nossa situação não seria tão caótica, basta ver as datas que foram criadas. Não acredito que as legislações sejam o problema do nosso país. Acredito que o que faltou no Brasil foram Arquitetos e Urbanistas que quisessem enfrentar a falta de compreensão da população com relação a dinâmica urbana e a educação de como é viver em uma cidade, respeitando o desafio que é criar uma cidade com qualidade e que respeite as pessoas, pois só conseguiremos ouvindo as pessoas, e não julgando. Tudo isto que estamos conversando foi nos ensinado como erros grotescos do movimento moderno (humano e maquina x fábrica de morar) e que simplesmente sedemos para o capital voraz e ignorante, pois no final das contas... estamos no mesmo planeta e por mais dinheiro que você tenha, você estará inserido em algum lugar, vivendo em alguma cidade ou passando por ela. Mas as reflexões são validas e tentar entender nossas cidades e o seus processos de consolidação é de extremamente importante para planejarmos coletivamente as nossas soluções.

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    1. Juliana, obrigado pelo comentário! Você tocou em vários pontos, e tentarei colocar uma resposta de forma organizada.

      Primeiro você citou a necessidade de “funcionários que possuem a total compreensão da dinâmica da cidade”. No entanto, como bem nos ensinou Jane Jacobs e economistas como Friedrich Hayek, esta compreensão total é impossível dadas as limitações cognitivas dos seres humanos. Por mais capazes que planejadores podem ser, eles não terão a capacidade de planejar “a cidade como um todo”, sendo esta a grande falha tanto do movimento moderno como do modelo soviético de governança. Ambos tentaram “ter uma compreensão total da cidade” e falharam tremendamente.

      Em seguida você falha que nosso planejamento é “inexistente". No entanto, fica evidente pelo número de leis e de planos que ele, de fato, existe, e qualquer historiador urbano irá concordar com este fato da nossa realidade. Rolnik, falando sobre São Paulo no seu livreto publicado pela Folha, concorda falando que o desenvolvimento de São Paulo, “Longe de ser caótico, este processo foi diretamente influenciado por opções de política urbana, tomadas em períodos fundamentais de sua história”. E o mesmo processo se repente em todas nossas grandes cidades.

      Quanto à nossa política, que você chama de “individualista”: pergunto qual política não é individualista ou, em um sentido mais abrangente ainda, qual indivíduo não é “individualista” na sua essência? Entendo que para buscar um resultado na nossa sociedade não podemos almejar outra realidade da natureza humana, mas sim considerá-la da forma que se observa.

      Por fim, concordo plenamente que devemos respeitar as pessoas, ouvi-las e construirmos a cidade de forma coletiva. No entanto, no meu entendimento isso só consegue ser atingido quando se descentraliza o planejamento entre todas estas pessoas, evitando a concentração de poder num pequeno grupo de planejadores. Seja qual for a vontade de gerar “participação popular”, esta será ínfima perante das verdadeiras vontades políticas e urbanísticas por trás do planejamento, e Jorge Hori explica muito bem este processo no texto “A cidade que o Haddad quer” http://iejorgehori.blogspot.com.br/2014/05/a-cidade-que-o-haddad-quer.html

      Agradeço imensamente sua contribuição. São comentários como este, que provocam um debate inteligente, que me incentivam a entender e pesquisar cada vez mais sobre nossas cidades.

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  2. Eu também concordo com muitos pontos do Antony. Manaus está passando pelo mesmo processo. Ainda moro em uma casa mas logo mais serei expulsa pela verticalização em andamento acelerado no meu bairro. Vivi no RJ e me lembro como era o Leblon, onde podíamos sair de casa (prédios baixos sem afastamentos) sem necessidade do automóvel e andar pelas calçadas usufruindo de todo tipo comércio e serviços, mas por outro lado, existe o problema da "permeabilidade do solo" cuja falta tem provocado problemas sérios de alagação em períodos de chuva em algumas cidades. O percentual de 15% obrigatório (depende a área do lote) na implantação das habitações multifamiliares visa justamente promover o retorno parcial da água para o solo (lençóis freáticos). Penso que os Planos Diretores se preocupam muito com o mercado imobiliário em detrimento do cidadão. Acredito totalmente em soluções que possam resgatar as atividades urbanas tornando possível a caminhada pelo próprio bairro usufruindo do comércio e serviços dispensando o automóvel e quem sabe a bicicleta.

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  3. esses espaços são importantes onde se discute o problema apontam soluções e fica por ai. Nosso espaço seria entrarmos em partidos politicos pequenos, tomar conta deles e selecionar os candidatos a vereador, prefeito, deputado e senador. Esse é - se ainda fosse tempo - de mudar o Brasil.

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