26.5.11

O Mito de uma Arquitetura Racional / The Myth of a Rational Architecture (1/3)

Parte II: Ayn Rand

Parte III: Múltiplas Racionalidades

Neste longo post de três partes argumentarei contra as teses que afirmam existir uma arquitetura racional. Na primeira parte farei um paralelo da arquitetura com a culinária, uma atividade semelhante por seu caráter tanto artístico quanto funcional. Na segunda parte falarei sobre Ayn Rand, uma entusiata da arquitetura e radical pela razão que tinha uma forte posição no assunto. Na terceira e última parte falarei sobre outras teorias que defendem uma arquitetura racional.

Parte I: Comida Racional

Segundo o dicionário Houaiss:

Racional: 1. relativo à razão

Razão: 2 raciocínio que conduz à indução ou dedução de algo 3 capacidade de avaliar com correção, com discernimento; bom senso, juízo 5 explicação de um ato; argumento, motivo

No meio acadêmico da arquitetura, a noção de um design puramente 'racional' é forte desde o início do século XX, com o surgimento do movimento moderno. A Bauhaus, a principal escola difusora dos seus ideais, acreditava em um design racional, que significava pura eficiência utilitária: seria deste princípio que se derivaria o seu valor estético. Contemporâneo da Bauhaus, Charles-Édouard Jeanneret, mais conhecido como Le Corbusier, também pensou na 'construção como uma máquina' e pregava a eliminação de qualquer tipo de ornamento 'inútil' e uma paixão pela engenharia, tornando uma edificação completamente 'eficiente', que se traduz hoje muitas vezes em uma arquitetura 'racional'.

Porém, eficiência e racionalidade em uma obra construída também pode ser vista de outra forma: o atendimento ao máximo dos desejos dos clientes e dos usuários, os verdadeiros consumidores do objeto arquitetônico. Assim como projetamos, cozinhamos para pessoas, e atender o gosto visual ou de paladar de cada um vai depender dos seus respectivos valores e preferências.

O paralelo com a culinária é interessante já que também é uma atividade que possui tanto um valor técnico (abrigar e alimentar, respectivamente) assim como um valor subjetivo (estética/conforto e estética/gosto/paladar). Enfim, ambas podem ser vistas como arte e ofício simultaneamente, e tradicionalmente se desenvolvem através da manipulação dos materiais (ou 'ingredientes') comuns a cada localidade, o que também pode influenciar na cultura e nos gostos de uma determinada sociedade.

No caso da arquitetura, os critérios técnicos podem ser a relação entre áreas fim e áreas meio, a ventilação, a incidência solar, a estanqueidade, a inércia térmica, a capacidade de usuários, a durabilidade e custo, analisados a fundo em livros excelentes como 'O Custo das Decisões Arquitetônicas', de Juan Luís Mascaró. Para culinária, podemos definir valores como higiene, quantias de nutrientes e presença ou não de toxinas (a ponto do curso superior deste estudo, de nutrição, ser mais procurado do que a própria gastronomia) e, é claro, o custo destes ingredientes. Mas tente misturar ingredientes que não combinam uns com os outros e pode (ou não) ser algo muito incômodo de ingerir, por mais que alguém possa argumentar que é a forma 'mais eficiente' de cozinhar. A receita irá agradar ou não diferentes pessoas, e o mesmo acontece com arquitetura.

Hotéis cápsula se tornam moda também na China. No Brasil, são proibidos

Assim como cada um de nós pode gostar ou não de pratos típicos de culinária japonesa ou até mesmo brasileira, podemos gostar ou não da forma como os projetos são concebidos em ambos países. Provavelmente o brasileiro pode não entender como japoneses aproveitam, valorizam e vivem em espaços tão pequenos, e até mesmo criam leis proibindo que vivam em salas menores que determinados tamanhos. Japoneses também costumam projetar para arejar e resfriar a edificação para não passarem calor no verão, mesmo tendo um inverno mais rigoroso que os gaúchos, que tradicionalmente se preocupam com o frio, insatalando sistemas de aquecimento, lareiras e se fechando para a orientação sul. Já na culinária, uma diferença marcante entre estas duas regiões é no consumo do peixe cru, visto por muitos gaúchos conservadores como algo "perigoso" pela necessidade de boa refrigeração para manter a carne fresca mas algo muito natural e parte da cultura dos japoneses.

Daslu, Parthenon, Zaha, Gehry: irracionais?

Mas ainda há outras incontáveis formas de se julgar uma obra arquitetônica positiva ou não, que para cada um pode ter uma justificativa perfeitamente racional. Há pessoas que tem prazer estando em espaços que são preservados no tempo, espaços que imitam espaços preservados no tempo, espaços que parecem naves espaciais de filmes de ficção científica, espaços em forma de binóculo e por aí vai. É muito difícil sustentar o argumento de que uma destas pessoas é 'irracional' simplesmente por terem prazer em ambientes que considerem esteticamente agradáveis segundo a sua bagagem cultural.

Seriam estas arquiteturas irracionais ou até mesmo ineficientes mesmo dando prazer a um número tão grande de pessoas? E partir deste princípio não levaria ao absurdo de um gaúcho dizer para um japonês que ele é irracional ao gostar de morar em um lugar apertado e de comer peixe cru? Ou de que todo mundo é irracional e apenas um grupo de pessoas que concordam com a Bauhaus é racional?

Ronchamp [imageshack] e Savoye [arquitetodepassagem.blogspot.com]: se decide, Corbu

Corbusier, ao longo de sua carreira, deve ter percebido a falácia das suas premissas iniciais, visto na sua obra da da Notre Dame du Haut, também conhecida como 'Capela de Ronchamp', que adota parâmetros estéticos muito diferentes das suas obras anteriores. Ela é considerada por muitos críticos uma das obras mais importantes concebida pelo arquiteto, alguns a colocando acima até da Ville Savoye, o modelo das premissas iniciais de funcionalidade. Em Ronchamp não se nota mais a tentativa de extrapolar apenas a questão técnica da construção, e Corbusier a desenvolve com uma intensidade enorme a plasticidade, a forma e as sensações subjetivas do usuário em um determinado espaço, que eram questões ignoradas e até criticadas nos seus textos. Por isso, críticos importantes como o italiano Giulio Carlo Argan consideram a obra uma espécie de dupla heresia de Corbusier, um ateu que projetou uma igreja segundo critérios diferentes da sua fé arquitetônica.

A supervalorização dos critérios técnicos pode ser notada ainda hoje na cultura brasileira, ainda mais forte entre os 'leigos', que não tiveram formação em arquitetura. Na percepção da grande maioria das pessoas, o engenheiro civil é muito mais qualificado para projetar um edifício do que um arquiteto. Mas a nutrição está para a culinária assim como a engenharia civil está para a arquitetura, e cada um deles tem um papel muito diferente na cozinha e na construção, respectivamente. Na sua raiz, nutrição e culinária eram apenas uma atividade: cozinhar, e arquitetura e engenharia também eram unificadas, o 'construir'. Hoje assim como especializamos funções em praticamente tudo, não se aprende como elaborar um saboroso prato de comida na faculdade de nutrição não se aprende como organizar o espaço na faculdade de engenharia.

Isso não quer dizer nem um pouco que eu não valorizo o estudo da engenharia e da nutrição. Muito pelo contrário, a última coisa que eu quero é comer coisas que podem antecipar significativamente a minha morte, muito menos morar em um edifício com alto risco de cair. Só não acho que essas qualidades devem ser confundidas com os prazeres subjetivos que cada um de nós tem ao comer e ao vivenciar um espaço. Se existe algo que pode ser definido como arquitetura racional nos termos utilitários descritos pelo movimento moderno de Le Corbusier, alguém que possui os valores de uma culinária 'racional' nos mesmos termos provavelmente se alimentaria e louvaria uma cuilinária que não tem gosto nenhum, uma papa industrializada nutritiva de baixíssimo custo e de consumo e digestão 'eficiente', sem perigos de intoxicação mas que não traz prazer algum. Sendo mais fiel ainda na comparação, na falta de gosto estaria o verdadeiro prazer de uma boa refeição.

-

Parte II: Ayn Rand

Parte III: Multiple Rationalities

In this long three-part post I will argue against the ideas that claim the existence of a rational architecture. In the first part I will compare architecture with culinary, a similar activity due to its functional as its artistic character. In the second part I will talk
about Ayn Rand, an architecture enthusiast and radical for reason which had a strong position on the subject. In the third and last part I will discuss about other theories defending a rational architecture.

Part I: Rational Food

According to Dictionary.com:

Rational: 2 having or exercising reasoon

Reason: 1 a basis or cause, as for some belief, action, fact, event, etc. 2 a statement presented in justification or explanation of a belief or action 3 the mental powers concerned with forming conclusions, judgments, or inferences.

In the academic world of architecture the notion of a purely 'rational' design is strong since the XXth century, with the establishment of the modern architecture movement. The Bauhaus, the most important school who taught these ideals, believed in rational design, which meant a purely functional eficiency: aesthetic value would emerge from from this principle. Contemporary to the Bauhaus, Charles-Édouard Jeanneret, most widely known as Le Corbusier, had also thought of 'the building as a machine' and prieched the elimination of all 'useless' ornament and a passion for engineering, making buildings completely 'efficient', which today is many times called 'rational' architecture.

However, efficiency and rationality in a built design can also be interpreted in another way: attending to the maximum the desires of clients and users, the true consumers of the architectural object. As we design we cook for people, and attending each persons taste will depend on each one of their values and preferences.

The comparison with culinary is interesting as it is also an activity which posesses both technical (shelter and feeding, respectively) as a subjective value (aesthetics, comfort, taste, pleasure). So both of them can be seen as art and craft simultaneously, and traditionally are developed by the manipulation of materials (or ingredients?) available in each place, which can also influence the culture and general tastes of a given society.

In case of architecture technical criteria can be the relation between serving and served areas, ventilation, solar incidence, thermal inertia, user capacity, durability, weatherproofing and cost, deeply analyzed in excellent books such as 'O Custo das Decisões Arquitetônicas' by Juan Luís Mascaró. For culinary, we can define values such as higene, nutritional values and the presence of toxins (to the point that study in this area is larger than culinary itself) and, of course, the cost of the ingredients. But try mixing ingredients which 'don't go' with each other and you will (or won't) get something very hard to ingest, no matter how thouroughly one might argue that it is the 'most efficient' way of cooking. The recipe will or not please different people, and the same happens with architecture.

As each one of us might or might not like typical japanese or even brazilian cuisine, we might or might not like their designs in the same way. Probably brazilians may not understand how japanese live in and make use of such small spaces, and even create laws forbidding people to live in rooms below certain sizes. Japanese also design in a way to cool the building so they don't feel too hot during the summer, even though they have a colder winter than the brazilian gauchos who live in the south, who traditionally worry about cold weather, installing heating systems, fireplaces and closing themselves to the southern facade. In culinary a remarkable difference is eating raw fish, seen by many conservative gauchos as 'dangerous' because of the necessity of good cooling to keep the meat fresh, but for japanese something very common.

But there are still numerous ways to judge a design good or bad, which for each person can have a perfectly rational explanation. There are people who feel good in preserved spaces, in spaces that imitate preserved spaces, spaces who look like spaceships from science fiction movies, binocular-shaped spaces, and so on. Its very hard to sustain the argument that these people are 'irrational' only because they feel good in spaces which they consider pleasant according to their cultural experience. Would these arhitectures be 'irrational' or even inefficient even when pleasuring such a huge number of people? Starting from this principle wouldn't we reach the absurd of a gaucho saying a japanese is irrational by wanting to live in tight spaces and to eat raw fish? Or that everybody is irrational and only a select group that agree with the Bauhaus is rational?

Corbusier, throughout his career, must have noticed the fallacy of his initial premisses, seen in his design of the Notre Dame du Haut, also known as Ronchamp, which follows principles much different from his earlier works. It is considered by many critics as one of his most important buildings, some ranking it even over the Ville Savoye, the cover girl for the functionality ideals. In Ronchamp the extrapolation of the technical efficiency side is put aside, and Corbusier intensely develops the plastic form and the subjective sensations of the user in a certain space, which were either ingnored or even criticized in his writings. This is why important critics like Giulio Carlo Argan consider the building a sort of double heresy by the architect, an atheist who designed a church with very different ideals from his arhitectural faith.

The overvaluing of technical chriteria can be noticed today in brazilian culture and stronger between 'laymen', which did not study architecture. In the view of most people the civil engineer is much more qualified to design a building than an architect. But nutrition is to culinary as civil engineering is to architecture, and they have very different roles in cooking and in building respectively. In their roots, nutrition and culinary were only one - cooking, and architecture and engineering as well - building. Today just as we specialize functions in pretty much everything, one does not learn how to prepare a top notch meal in nutrition class and one does not learn how to organize space in engineering school.

This does not at all mean that I don't value the study of engineering and nutrition. By the contrary, the last thing I want is to eat things that can significantly anticipate my death, nor I want to live in a building with a high risk of falling. I just don't think that these things should be mixed up with the subjective values each one of us has by eating and experiencing a certain space. If there is something that can be defined as rational architecture in the utilitarian terms described by the modern movement and by Le Corbusier, someone who is culinary 'rational' in thr same terms would probably eat and honor a low-cost industrialized, nutritious, efficiently digestive dull paste with zero intoxication risk and no pleasure at all. Comparing it a little further, the real pleasure of a good meal would come from the lack of taste.

Nenhum comentário:

Postar um comentário